Enrolando a Inquisição
A história do enfrentamento entre o grande pintor veneziano Paolo Veronese e a Inquisição mostra como é possível, com criatividade, driblar a intolerância em qualquer época. Inquisidores não entenderam as razões de Veronese preencher uma versão da Ultima Ceia - pintada para o refeitório do Convento de São João e São Paulo, em Veneza - com personagens alheios à tradicional cena descrita na Bíblia. O artista inseriu um bufão, soldados alemães, um cachorro e um papagaio. Três meses após entregar a encomenda, em 20 de abril de 1573, Veronese foi intimado pelo Santo Ofício e sua inquirição é extremamente esclarecedora sobre a mentalidade de um artista forjado na Renascença.
Um dos inquisidores pergunta:
“Qual o significado dessa gente armada e vestida à moda alemã que sustenta uma alabarda [espécie de machado de cabo longo] na mão?”
E Veronese, sem se abalar, responde:
“Nós, os pintores, tomamos as licenças que tomam os poetas e os loucos. Eu pintei esses alabardeiros, um bebendo e o outro comendo num degrau, preparados para cumprir seus serviços, pois me pareceu possível que o dono da casa, rico e poderoso tivesse tais servidores”.
Em vez de 15, como tradicionalmente se convencionou retratar a Santa Ceia, Veronese colocou 50 personagens espalhados no grande átrio onde se realiza o banquete. Ao ser indagado quantos haviam participado do evento, o artista responde:
“Eu acho que só estiveram Cristo e os Apóstolos, mas quando num quadro sobra espaço, decoro com figuras tais quais imagino”.
Entre essas “figuras”, estão o bufão com um papagaio no braço, um criado que sangra pelo nariz, um gato, um cachorro, um pintor (que seria o próprio Veronese) e os alabardeiros alemães. Esses últimos são os que mais incomodam a Inquisição, pois na época a Igreja Católica estava em guerra com os estados protestantes que passaram a seguir a doutrina de Martinho Lutero.
O inquisidor levanta a voz:
“Parece-lhe conveniente representar na última ceia de Nosso Senhor, povo alemão, ébrios, armas, anões e outros disparates?”
“Não”, retruca Veronese, ouvindo em seguida uma reprimenda.
“O senhor não sabe que a Alemanha e outros países contagiados pela heresia têm o costume, em suas pinturas repleta de disparates, de envilecer e ridicularizar os assuntos da Santa Igreja Católica, para ensinar a falsa doutrina aos ignorantes e aos insensatos?”
E aqui o artista explica que, apesar do risco que correu de contrariar a Igreja Católica não podia “trair” os mestres da Renascença que criaram esse estilo livre de pintar.
“Convenho que está mal, mas volto a dizer o que disse: é meu dever seguir os exemplos que me deram os meus antepassados. Eu não considerei tantas coisas. Nunca imaginei uma desordem tão grande”.
Na sentença sobre o caso, a Inquisição exigiu que em três meses Veronese “corrigisse” os erros do painel, mas ele não atendeu. Arrumou uma forma criativa de burlar a determinação. Se as ofensas teriam sido a introdução de personagens numa cena considerada sagrada pela Igreja, por que não transformá-la num outro episódio bíblico, mais popularesco?
Assim, o artista mudou o quadro para um evento citado no Evangelho de Lucas, a “Ceia na casa de Levi”. O apóstolo Simão virou Levi e Veronese escreveu a legenda embaixo da cena, com a citação “Lucas, capítulo V”. O caso foi esquecido em pouco tempo e o artista não teve mais problemas com o Santo Ofício. Estudiosos da obra de Veronese acham que ele conseguiu se safar com relativa facilidade pelo fato de a Inquisição não ter em Veneza o poder que tinha em Roma. No estado veneziano, os inquisidores só podiam se reunir para um processo e interrogatório na presença de representantes do governo civil.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
Enfrentando a epidemia com divertimento
Trago do passado mais alguns exemplos de negacionismo em relação a epidemias e pestes que poderiam ser aplicados tranquilamente nos dias de hoje, ante a teimosia das pessoas em insistir em se aglomerar em eventos públicos. Conta o grande historiador francês Jean Delumeau que houve um tempo, e ele o situa entre os séculos XIV e XVII, que setores importantes da sociedade consideravam que o medo e o abatimento ajudavam a pessoa a se contaminar com as doenças.
Já mostramos em comentário anterior que as religiões condenavam os fiéis que fugiam das pestes. Mas não eram só os clérigos. Alguns médicos diziam que somente o ar corrompido não teria capacidade de sozinho causar o contágio, ele precisava combinar-se com o “fermento do pavor”. O cirurgião francês Ambroise Paré dizia que nos períodos de epidemia “é preciso manter-se alegre, em boa e pequena companhia e às vezes ouvir cantores e instrumentos musicais”. Será que foi com esse espírito de Paré que milhares de pessoas foram às festas de final de ano nas praias de Pipa e São Miguel do Gostoso, no Rio Grande do Norte, ou em Porto Seguro na Bahia ou vão assistir ao pôr do sol, diariamente, no Farol da Barra?
Outra autoridade médica do século XVII garantia que era preciso enfrentar as pestes “sem medo, sem temor e sem emoção”, sentenciando que tão somente o pavor desse mal é capaz de provocá-lo em um ar suspeito. Isso porque o coração apavorado fica tão fraco que não resiste ao veneno da epidemia.
Até no século XX, um estatístico que compilava dados sobre epidemia de cólera na Europa escreveu que as emoções da alma podiam agravar o estado dos doentes e por essa razão a epidemia pode ter se espalhado naquela ocasião pelo excesso de trabalho, os assomos da raiva e sobretudo o medo.
Essa concepção geral sobre as epidemias levou os magistrados da cidade francesa de Metz, por ocasião de uma peste no século XVII, a ordenar divertimentos públicos a fim de devolver a coragem e o ânimo aos habitantes dizimados pelo contágio. Nos dias de hoje não temos juízes ordenando as pessoas a saírem as ruas para se divertir. No entanto, algumas autoridades conseguem provocar estragos maiores negando o perigo da epidemia de covid.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
Os deuses devem estar loucos
Aviso que esse artigo contém spoiler. É que revi, recentemente, o filme “Os deuses devem estar loucos”, (por sinal título apropriado para os dias de hoje) e a história se assemelha ao fenômeno do “culto à carga”, quando, depois da Segunda Guerra Mundial, nativos que viviam isolados, na região da Nova Guiné, ao tomar conhecimento das geringonças de colonizadores europeus, são atingidos pela maldição segundo a qual “qualquer tecnologia avançada o bastante é indistinguível da magia”. Ou seja, os ilhéus achavam que os equipamentos mecânicos e eletrônicos dos estrangeiros eram produzidos e enviados por deuses, em forma de carga, e tentam repetir os hábitos dos colonizadores pra também obterem o mesmo material.
Pois bem no filme “Os deuses devem estar loucos” uma garrafa de vidro vazia de Coca Cola é descartada pelo piloto mal-educado de um pequeno avião que sobrevoava a reserva de uma tribo africana, isolada do mundo. Como os nativos da Nova Guiné, esses indivíduos nunca tinham entrado em contato com um objeto manufaturado como aquele, de formato cilíndrico, transparente e duro. Acharam que a garrafa era um presente dos deuses e logo perceberam que poderia ser usada para várias utilidades manuais (amassar raízes, esticar couro de cobra e outros).
O objeto passa a ser cultuado e cria uma dependência para os integrantes da tribo, que sempre dividiram tudo, mas não podiam dividir o presente divino. Aí começam os desentendimentos e a garrafa chega a ser usada como arma para um garoto bater na cabeça de outro.
Após várias desavenças causadas pelo objeto, o líder da tribo conclui, com os mais velhos, que aquilo era uma “coisa má”, que fora mandada pelos deuses para testá-los, episódio recorrente nos livros sagrados de várias religiões. O líder resolve, então, devolver o presente aos deuses, e para isso era preciso jogá-lo no buraco do fim do mundo, local desconhecido, que ele vai procurar numa jornada ao mundo exterior. Uma alegoria extraordinariamente bem-feita sobre os malefícios que o mundo civilizado provocou nas tribos primitivas e o tremendo choque cultural entre os povos.
O problema da história começa aí, pois o autor resolveu colocar o líder da tribo em contato com pessoas “civilizadas” e o filme se transforma numa comédia-pastelão, embora não perca a mensagem antropológica do choque de culturas e da criação das religiões e seus dogmas. Outro filme que mostra como a criação de um mito pode surgir de uma coisa simples é “A vida de Brian”, do grupo de humoristas ingleses Monty Python. É sobre um personagem que nasceu numa manjedoura vizinha à de Jesus e, ao longo da vida, é confundido com o messias. Há uma sequência em que, tentando escapar de um grupo de pessoas que o cultua como o Salvador, Brain deixa cair uma cabaça e perde uma sandália. Os devotos acreditam que o messias forneceu dois sinais divinos. Então, um grupo funda a ala dos seguidores da cabaça e outro, de adeptos da sandália. E, assim, começa a primeira cisão da nova religião. Pra saber mais, fica a sugestão dos dois filmes, Os deuses devem estar loucos e A vida de Brian.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
As epidemias e as religiões
Religiões rivais em vários momentos da história, o islamismo e o cristianismo adotaram, no passado, atitudes mais ou menos semelhantes quando seus seguidores enfrentavam epidemias como a da covid. Em princípio, interpretavam a causa do infortúnio com castigo divino e seus corifeus religiosos garantiam que Deus não aceitava que os fiéis fugissem da praga ou tivessem medo dela, porque ele saberia quem seria chamado à sua presença.
Martinho Lutero, líder protestante escreveu sobre as epidemias que era preciso suportá-las com paciência, sem temer, pois, na sua interpretação, tratava-se de um decreto divino. Outro líder ia pela mesma linha, alegando que, “se apraz a Deus golpear-nos”, é preciso suportar, porque na sua visão seria tudo para nosso proveito e regeneração.
Nos países muçulmanos se dizia o mesmo, segundo o historiador Jean Delumeou e os sacerdotes insistiam que as vítimas das epidemias morreriam como mártires. Isso se não tentassem fugir do seu destino. É como se morressem combatendo na guerra santa como um guerreiro.
Os líderes viam como única saída pra parar as pestes, fazer penitência, pedir perdão pelos pecados, um fenômeno de culpabilização que atingia grandes massas, principalmente na Europa. Porque o arrependimento individual não servia. Ele teria que ser coletivo. Assim, em várias ocasiões, multidões enfrentaram as epidemias em eventos públicos de penitência. Uma estampa inglesa do século XVII mostra uma multidão, da religião anglicana, reunida em tempo de pandemia na frente da catedral de São Paulo pra escutar um sermão. A legenda da estampa diz “Senhor, tende piedade de nós. Pranto, Jejuns e Preces”.
Jean Delumeou lembra que nos países católicos as autoridades eram obrigadas a organizar manifestações públicas em períodos de epidemias, seguindo o estilo da confissão romana em que a comunidade tranquilizava a si mesma estendendo os braços para o Todo Poderoso. Mesmo sem poder contar com uma medicina eficiente, as pessoas sabiam que o isolamento evitava a propagação das pragas. No entanto, não ousavam desafiar a divindade que, supostamente, enviava as epidemias. Assim, com a ampliação das penitências coletivas pra renovar os pedidos de perdão, o efeito era contrário criando um círculo vicioso interminável. Mais gente nas ruas pedindo perdão, mais mortes.
Em Milão no ano de 1630, quando uma epidemia estava acabando, os fiéis exigiram do arcebispo a organização de uma grande procissão. Mesmo sabendo o perigo do contágio, o arcebispo cedeu e a multidão percorreu as ruas de Milão com um relicário de São Carlos. Uma característica desta procissão é que ela passou pelos bairros parando em todas as encruzilhadas, locais conhecidos pela crença popular onde são realizados os pactos demoníacos. A ideia era exorcizar eventuais demônios que rondavam a cidade e ajudavam a ampliar os estragos da praga daquele ano.
A trágica coincidência desses eventos do passado com os dias de hoje no Brasil é que, uma parte da população, continua desdenhando do isolamento social, participando de eventos públicos de lazer, não de penitência, sem se preocupar com as aglomerações. Mesmo sabendo do grande perigo de contágio da covid e do risco de morte, como ocorria há 600 anos.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
A dificuldade para desfazer um feitiço
Infeliz da pessoa vítima de algum “feitiço” no passado. Mais até que no presente. É que, se nos dias de hoje, as pessoas que acreditam nos “trabalhos” podem recorrer a algum especialista nas coisas do sobrenatural para encomendar um antídoto, um contrafeitiço, no passado procurar a cura através do mesmo método, ou seja, com a ajuda de uma bruxa ou um bruxo era considerado tão nocivo para a alma quanto o sortilégio que o alvejou.
Esse assunto gerou debates entre teólogos e autoridades clericais. São Tomás de Aquino, São Boaventura e Santo Alberto, por exemplo, vetavam qualquer tipo de antídoto que implicasse na evocação do “auxílio diabólico”. Eles permitiam apenas exorcismos, orações aos santos e penitência genuína que poderiam remover (ou não) os malefícios de forma “lícita”. Senão, consideravam que era “melhor morrer” pois, pelo menos, a vítima salvaria a alma.
Outra vertente, defendida pelos teólogos Duns Scoto e Henrique de Segúsio, considerava, no entanto, ser possível remover bruxarias com as mesmas armas. “Aquele que destrói a obra do diabo não há de ser partícipe dessa mesma obra”, argumentavam. O método de cura usado era transferir o malefício para a bruxa que o provocou. Na diocese de Constance, Germânia, um bruxo “do bem” chamado Hengst, no século XV, atraía multidões formadas por vítimas de sortilégios à busca de curas. Inquisidores chegaram a lamentar que santuários católicos não atraiam tanta gente...
Isso explica em parte, a oposição da igreja e dos governos a curandeiros e adivinhos na Idade Media. Ou seja, os padres e dirigentes estavam, na verdade, preocupados com a concorrência dos adivinhos, bem mais requisitados pelas pessoas pra resolver seus problemas.. Aliás, como ocorre nos dias de hoje.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
Segunda chance pra limpar os pecados
Confirmando a tese segundo a qual a Idade Média é a época da história que mais moldou e ainda molda o nosso presente, o papa Francisco lançou mais uma indulgência plenária em referência ao Ano de São José, instituído por ele entre dezembro de 2020 e dezembro de 2021. É a segunda este ano. A indulgência começou a ser usada a partir de 1300 pelo papa Bonifácio VIII para comemorar o primeiro jubileu cristão. A bula referente ao assunto, oferecia ao católico a possibilidade de limpar todos os pecados a quem fizesse uma peregrinação a Roma passando pela porta da Basílica de São Pedro.
Pra quem acredita, a limpeza dos pecados, através da indulgência, coloca a pessoa em excelentes condições de transitar no além, pois sua alma escaparia do inferno, iria direto para o paraíso sem precisar passar pelo purgatório onde o católico queima as faltas cometidas em vida com sofrimento.
Desmoralizada com o tempo, pois passaram a ser vendidas, as indulgências fomentaram a grande cisma da Igreja ocorrido no século XVI com o rompimento de Martinho Lutero, fundador do Protestantismo. A indulgência foi retirada da prática religiosa pelo Concílio Vaticano II na década de 1960. No entanto, retornou pelo papa João Paulo II que autorizou os bispos a oferecerem essa anistia aos pecados no ano 2000, como parte das comemorações do milênio da igreja. Nesse caso era necessário passar pelas portas da Basílica de São Pedro, em Roma. Depois, o papa Bento XVI tornou as indulgências plenárias usáveis em datas religiosas como o jubileu da Igreja como ocorria no passado. Em 2015, ocorreu mais uma flexibilização: uma indulgência plenária beneficiou os que passassem pelas Portas da Misericórdia, instaladas simbolicamente em basílicas de todas as partes do mundo. Na Bahia, a escolhida foi a Basílica do Bonfim. Milhares de baianos passaram pela porta da misericórdia no ano em que ela ficou aberta para limpar os pecados.
No início deste ano de 2020, o papa Francisco já havia instituído uma indulgência plenária para as vítimas do corona vírus seguindo as regras usuais: a confissão dos pecados, assistir missa contrito e prometer não pecar mais. Agora, indulgência referente ao Ano de São José segue parâmetros semelhantes. Para se beneficiar dela é preciso meditar “por pelo menos 30 minutos a oração do Pai-Nosso”, ou participar de um retiro espiritual, mesmo por um dia “que inclui uma meditação sobre São José”. Para quem acredita, é preciso lembrar que a indulgência apaga apenas os pecados passados, não os que, eventualmente, sejam cometidos no futuro pelo católico.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
A lenda da perna cabeluda
Pouco conhecida na Bahia, no entanto, no nosso vizinho Pernambuco, não há quem nunca ouviu falar da lenda urbana da Perna Cabeluda. A história é relativamente recente, não consta, por exemplo, no livro “As Assombrações do Recife Velho”, do grande Gilberto Freyre.
A Perna Cabeluda é um autêntico fake news, (muito antes do termo entrar em moda), que surgiu na década de 1970 da cabeça do radialista Jota Ferreira. Ele atuava no plantão policial e, certo dia, como o noticiário estava fraco de ocorrências, noticiou a agressão de uma mulher por uma misteriosa perna cabeluda, que estava escondida debaixo da cama dela. Uma piada surreal, pra animar os ouvintes.
No entanto, mesmo num época em que não existia computador pessoal, nem internet, o boato se espalhou como fogo na palha, pois o ser humano adora acreditar em eventos misteriosos. Rapidamente, moradores do Recife começaram a relatar aparições da Perna Cabeluda em vários pontos da cidade e logo lhes deram características. A entidade costumava se esconder à noite em cantos escuros, atrás de árvores à espera de transeuntes incautos. Surgia de repente na frente das vítimas, lhes dava uma rasteira, seguida de vários pontapés e depois sumia correndo pelas vielas recifenses, deixando o espancado apavorado e sem voz.
Nos hospitais pernambucanos acidentados em farras noturnas garantiam que eram atacados pela assombração e a lenda se firmou, assustando as crianças, pois alguns pais substituíram o tradicional bicho-papão das histórias criadas para conter meninos e meninas peraltas, pela Perna Cabeluda.
A consagração da entidade como mito popular veio na década de 1990 com sua citação na música do grupo pernambucano Nação Zumbi “Banditismo por uma questão de classe”. Num trecho, a música diz que o bandido famoso, o Galeguinho do Coque, não tinha medo da Perna Cabeluda. Mas ela continua lá, se esgueirando pelos ermos pernambucanos, esperando a próxima vítima.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
O defunto do ano
Embora os temas funerários, geralmente provoquem medo, o homem também aprendeu a lidar com a morte de forma debochada em várias culturas ao longo do tempo. Um exemplo dessas brincadeiras está bem viva em Bonfim de Feira, distrito do município de Feira de Santana. Lá nasceu a irreverente cerimônia de despedida do Ano Velho que é representado por um boneco, substituído durante a cerimônia por um morador da localidade, eleito o “defunto do ano”.
Pra representar o personagem, a pessoa precisa entrar num caixão funerário que é conduzido pelas ruas de Bonfim de Feira até a igreja local, tudo acompanhado por ruidoso cortejo com a população se divertindo ao som de música carnavalesca. O ponto alto da festa é quando o defunto do ano sai do caixão e o boneco é recolocado no lugar e o conjunto, então, queimado na praça na maior animação.
A tradição começou em 1972 criada por Vital Souza, que herdou uma funerária do pai. Pra comemorar a passagem do ano, ele resolveu pegar um caixão infestado de cupins, chamou os amigos e todos saíram festejando o réveillon pelas ruas de Bonfim de Feira até queimar o caixão.
Nos anos seguintes a festa evoluiu e um boneco foi colocado no caixão até a ideia de homenagear uma pessoa da comunidade elegendo-o o “defunto do ano”. Aí a festa se tornou cada ano mais animada. Quem quiser conhecer o “A queima do ano velho” pode assistir a última no portal “Meus sertões”
(www.meussertoes.com.br) do jornalista Paulo Oliveira.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
A lenda da botija de ouro
Uma das lendas mais interessantes do interior do Brasil, é a da botija de ouro. Entes sobrenaturais aparecem em sonho ou durante o dia mesmo, para indicar a um escolhido a existência de uma botija cheia de ouro escondida em certo lugar, que deveria ser desenterrada, geralmente, à meia-noite para aumentar o mistério. A pesquisadora Helenita Hollanda coletou várias histórias de botijas nos estados nordestinos e é possível traçar algumas características dessa lenda que surgiu, em alguns lugares, do boato segundo o qual padres jesuítas teriam enterrado dobrões de ouro próximos a seus conventos pouco antes de serem expulsos do Brasil em 1759 pelo Marquês de Pombal, o secretário de estado do reino de Portugal.
A partir de um fato verdadeiro, cria-se a lenda que se popularizou nos grotões brasileiros. Mas quem vai tentar desenterrar a botija precisa ultrapassar vários empecilhos, conforme o relato da filha de um comerciante da cidade pernambucana de Aliança cujo pai José Matias conseguiu retirar as peças de ouro do local indicado em sonho pelo espírito de um amigo.
A instrução é que ele pegasse a enxada e fosse cavar à meia-noite embaixo de uma árvore, numa encruzilhada e não prestasse atenção nos eventos que demônios iram criar no local para distraí-lo ou assustá-lo. Quando ele estava cavando apareceu bode, galinha, galo cantando tudo pra ele desviar o olhar. Mas Zé Matias se manteve firme e localizou a botija cheia de moedas de prata e ouro. Ele retirou o butim sobrenatural e precisou mudar da vila onde morava pois, segundo a lenda, quem acha uma botija de ouro em determinado lugar não pode gastar o dinheiro lá, a menos que enterrasse um pinto vivo. Zé Matias preferiu não fazer essa maldade com a ave, se mudou, comprou um armazém e prosperou na vida graças ao presente do além. Tenho certeza que essa história vai motivar muitos leitores do interior a relembrar os casos de botijas de suas regiões.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
Os epitáfios de dois artistas geniais
Os epitáfios tiveram várias fases ao longo da história. Primeiro começaram sumários e poucos indicavam a identidade das pessoas ou mesmo ano de nascimento e morte. Mas houve um período em que os epitáfios começaram a tagarelar, como classificou o historiador Phillip Ariés. Isso ocorreu a partir do final do século XIV e trago aqui dois exemplos significativos de como a mentalidade de uma época revela-se surpreendente aos dias de hoje. São os epitáfios dos irmãos artistas flamengos Hubert e Jan van Eyck, gênios do seu tempo. Entre as obras dos dois está a famosa pintura do retábulo batizada de “Adoração do Cordeiro Místico”. Hubert, 20 anos mais velho que o irmão Jan morreu em 1426 e para homenageá-lo foi colocada a seguinte inscrição numa placa sobre seu túmulo:
“Vêde em mim vossa imagem, vós que passais sobre minha cabeça. Fui em outro tempo como vós, e agora estou morto e estendido na terra. Nem a prudência, nem a arte, nem a medicina, me serviram. Honra, habilidade, sabedoria, poder, opulência, grandeza, nada respeita a morte. Chamavam-me Hubert van Eyck, era célebre e admirado como um grande pintor, e agora me devoram os vermes. Era algo há poucos dias e agora nada sou. No ano do senhor de 1426 entreguei minha alma a Deus. Rogai por mim os que amais a arte, a fim de que possa lograr Sua graça; fugi do pecado e fazei o bem, para que um dia possais seguir-me”.
O estilo procura passar uma lição de moral às pessoas, mostrando que a vida é efêmera e portanto é melhor seguir o caminho da retidão. Ao mesmo tempo, apela por preces para ajudar na salvação da alma, criando um diálogo entre o defunto e quem lê a inscrição.
O epitáfio de Jan van Eyck, considerado o mais talentoso dos dois irmãos, passa uma ideia de que seu desaparecimento é uma perda irreparável para a humanidade.
“Jaz aqui Jan, célebre por seu mérito, e cujos quadros possuem uma graça maravilhosa; soube pintar formas vivas, a terra carregada de floridas plantas, e animar tudo quando representava.
Venceu a Fídias e a Apeles; Policleto lhe foi inferior. Acusai as parcas cruéis que arrebataram tal homem. Que nosso pranto culpe o destino implacável. Roguemos a Deus que lhe abra o céu”.
Um parêntesis. Os citados Fídias, Apeles e Policleto eram artistas famosos da Grécia antiga. As parcas, na mitologia romana, entidades que controlam o destino dos mortais.
Certamente não foi o próprio Jan van Eyck que bolou seu epitáfio. Sua modéstia, revelada em várias ocasiões, não permitiria. Exemplo disso era como ele costuma assinar suas obras: “Faço o que posso”.
Após esse período de eloquência, os epitáfios ficaram mais sumários pois se entendia que escrever exaltações poderia passar a ideia de vaidade. Dessa nova fase temos um exemplo baiano bem significativo, o epitáfio do senhor de engenho Gabriel Soares de Souza sepultado no final do século XVI no Mosteiro de São Bento de Salvador. Ele mandou escrever em seu túmulo, simplesmente “Aqui jaz um pecador”.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.