Caso Mari Ferrer: violência de gênero não pode ser estratégia da defesa, diz comissão da OAB
A Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional divulgou nesta quarta-feira (4) nota repudiando os fatos que aconteceram no julgamento de Mariana Ferrer, que denunciou ter sofrido estupro em uma boate em Jurerê Internacional, Florianópolis. Um vídeo que veio a público nesta terça-feira mostra o advogado do réu humilhando Mariana durante uma audiência. André de Camargo Aranha, o acusado, acabou inocentado em primeira instância, em uma decisão polêmica que traz uma tese que foi considerada por muitos como uma espécie de "estupro culposo".
"É inadmissível o tratamento recebido pela vítima durante a sessão. É indispensável que seja apurada a ação ou omissão de todos os agentes envolvidos, já que as cenas estarrecedoras divulgadas mostram um processo de humilhação e culpabilização da vítima, sem que qualquer medida seja tomada para garantir o direito, a dignidade e o acolhimento que lhe são devidos pela Justiça", diz anota da comissão.
O texto cita que o caso de Mariana não é isolado em julgamentos de crimes sexuais e que situações assim acabam afastando as vítimas da busca por justiça. "Os números mostram que 75% das vítimas de crimes sexuais em nosso país não denunciam. E, por mais que sejam feitas campanhas estimulando que as mulheres denunciem, esse número não mudará enquanto o sistema de justiça brasileiro não mudar estruturalmente como atua no julgamento dos crimes sexuais", continua.
Para a comissão, a violência de gênero não pode ser usada como uma estratégia de defesa e Ministério Público e juiz não podem praticá-la também, nem ficar omissos diante do que vêem. "A injustiça cometida contra Mariana Ferrer também é contra todas as mulheres do Brasil. Não podemos aceitar esse tipo de postura que criminaliza a vítima. O exercício profissional da advocacia na defesa dos direitos dos cidadãos deve estar sempre pautado na ética e na dignidade da pessoa humana", afirma a nota.
A comissão expressa solidariedade com Mariana e diz esperar que providências sejam tomadas. O texto é assinado por Daniela Lima de Andrade Borges, presidente da comissão, Alice Bianchini, vice-presidente, Claudia Maria da Fontoura Messias Sabino, secretária-geral e Marisa Chaves Gaudio, que é seecretária-adjunta da comissão.
Indignação
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), demonstrou indignação com as cenas da audiência da promotora de eventos Mariana Ferrer, 23 anos, que acusa o empresário André de Camargo Aranha de estupro.
“As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, afirmou Mendes no Twitter.
Imagens
O vídeo mostra o advogado Claudio Gastão da Rosa Filho exibindo cópias de fotos sensuais de Mariana, que era modelo profissional, como maneira de fortalecer o argumento de que o sexo que aconteceu foi consensual. Assista
Ele chama as imagens de "ginecológicas". Mariana responde: “Muito bonita (a foto), por sinal, o senhor disse né, cometendo assédio moral contra mim, o senhor tem idade pra ser meu pai, o senhor tem que se ater aos fatos”, disse a jovem.
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“Graças a Deus eu não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus, e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher feito você”, rebate o defensor.
Ele também repreende o choro de Mariana em determinado momento: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.
A jovem reclamou para o juiz. “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz. O juiz faz poucas intervenções, mas pede em um momento pausa para Mariana se recompor e tomar água.
Procurado pelo The Intercept Brasil, site que divulgou as imagens, que viralizaram nesta terça-feira (3), o advogado do empresário disse que não ia comentar um processo sob segredo de Justiça, “principalmente em face de indagações descontextualizadas que revelam má fé e parcialidade”.
A OAB de Santa Catarina diz que teve acesso à cópia do processo judicial e informou que oficiou o advogado Cláudio Gastão para prestar esclarecimentos sobre sua conduta na audiência do caso de Mariana.
Acusação
O Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC) afirmou na argumentação contra o acusado que teria ocorrido um "estupro culposo", ou seja, sem intenção, algo que não está tipificado na lei.
Para o promotor, o réu não teria como saber que a jovem não tinha condições de consentir com o ato sexual.
Com a versão apresentada em juízo, o MP voltou atrás, já que havia apresentado denúncia contra o empresário em julho de 2019, acusando André de estupro de vulnerável, seguindo o mesmo entendimento do inquérito policial, de que a jovem não tinha discernimento para consentir a relação.
No meio do caminho, houve uma mudança de promotores. O promotor de Justiça Alexandre Pizza, que fez a denúncia, saiu voluntariamente para assumir outra promotoria, diz o MP, e entrou no lugar o promotor Thiago Carriço de Oliveira, que fez as alegações finais.
Para Carriço, não houve "dolo" na ação de Aranha. Ele argumentou que não havia como provar tecnicamente que a vítima estava sob efeito de drogas, já que os laudos técnicos não apontaram nenhuma substância. Com base em uma doutrina do Direito, Carriço defendeu o fator “culposo” na hipótese da ocorrência de “erro do tipo criminal”.
O promotor, portanto, concluiu que o fato ocorreu de fato, mas não era possível provar que a vítima estava incapaz, nem que o réu tinha conhecimento dessa possível incapacidade.
O juiz Rudson Marcos, em sentença de 9 de setembro, também concluiu que não havia certeza sobre se Mariana estava ou não com capacidade de oferecer resistência.
“Diante da ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação, decido a favor do acusado André de Camargo Aranha”, diz o texto. Ainda cabe recurso.
Repercussão do ‘estupro culposo’
Antes da manifestação do ministro Gilmar Mendes, a tag #justicapormarianaferrer foi parar nos temas mais comentados do Twitter no Brasil nesta terça.
Famosas se manifestaram sobre o assunto. Bruna Marquezine republicou a matéria do caso e lamentou. "'Estupro culposo', pqp", escreveu. “'Estupro culposo' não existe", declarou a cantora IZA. "Justiça por Mariana Ferrer", pediu Deborah Secco.
Rafa Kalimann escreveu um desabafo. "'Não teve a intenção de estupra-lá'. Ahn? Isso existe? Quantas ? Quantas vezes? Quantas vezes mais? Quantos outros medos? Quantas outras agressões? Quantos outros estupros 'sem querer'? Quanto tempo nós temos? Talvez nenhum. Não dá pra esse medo continuar.Quantas escondem o estupro ou a agressão or medo de expor e ninguém acreditar?", escreveu.
Absolvição
O empresário André de Carmargo Aranha foi absolvido pela Justiça da acusação de estuprar Mariana Ferrer dentro do beach club Cafe da la Musique, em Florianópolis, em dezembro de 2018. Mariana denunciou o caso pelas redes sociais - posteriormente, o Instagram dela foi retirado do ar pelo Facebook. O juiz Rudson Marcos julgou como improcedentes as denúncias da jovem.
Foram ouvidas 22 testemunhas, além da própria Mariana e de André. Ele inicialmente havia negado ter tido contato com a jovem, mas depois disse que teve um contato sexual com ela, mas não chegou a concretizar uma relação sexual.
Foram realizados seis exames periciais e uma ação de busca e apreensão dos equipamentos eletrônicos do acusado. A conclusão das investigações, que ocorreram em sigilo, é de que “não há provas contundentes nos autos a corroborar a versão acusatória”.
O caso veio a público quando Mariana compartilhou o relato no Instagram em maio do ano passado. Ela divulgou um vídeo do circuito de segurança em que aparece entrando e saindo do local em que teria ocorrido o estupro, prints de mensagens e áudios que enviou a amigas pedindo ajuda e uma foto do vestido que usava naquela noite, manchado de sangue.
Mariana também disse que registrou boletim de ocorrência e fez exame de corpo delito no dia seguinte ao ocorrido. Ela publicou prints do laudo pericial que confirmou a presença de sêmen na calcinha que usava. O sêmen tinha DNA compatível com o de André, segundo exames. Ainda assim, acabou absolvido no julgamento de primeira instância.