A dificuldade para desfazer um feitiço
Infeliz da pessoa vítima de algum “feitiço” no passado. Mais até que no presente. É que, se nos dias de hoje, as pessoas que acreditam nos “trabalhos” podem recorrer a algum especialista nas coisas do sobrenatural para encomendar um antídoto, um contrafeitiço, no passado procurar a cura através do mesmo método, ou seja, com a ajuda de uma bruxa ou um bruxo era considerado tão nocivo para a alma quanto o sortilégio que o alvejou.
Esse assunto gerou debates entre teólogos e autoridades clericais. São Tomás de Aquino, São Boaventura e Santo Alberto, por exemplo, vetavam qualquer tipo de antídoto que implicasse na evocação do “auxílio diabólico”. Eles permitiam apenas exorcismos, orações aos santos e penitência genuína que poderiam remover (ou não) os malefícios de forma “lícita”. Senão, consideravam que era “melhor morrer” pois, pelo menos, a vítima salvaria a alma.
Outra vertente, defendida pelos teólogos Duns Scoto e Henrique de Segúsio, considerava, no entanto, ser possível remover bruxarias com as mesmas armas. “Aquele que destrói a obra do diabo não há de ser partícipe dessa mesma obra”, argumentavam. O método de cura usado era transferir o malefício para a bruxa que o provocou. Na diocese de Constance, Germânia, um bruxo “do bem” chamado Hengst, no século XV, atraía multidões formadas por vítimas de sortilégios à busca de curas. Inquisidores chegaram a lamentar que santuários católicos não atraiam tanta gente...
Isso explica em parte, a oposição da igreja e dos governos a curandeiros e adivinhos na Idade Media. Ou seja, os padres e dirigentes estavam, na verdade, preocupados com a concorrência dos adivinhos, bem mais requisitados pelas pessoas pra resolver seus problemas.. Aliás, como ocorre nos dias de hoje.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
Segunda chance pra limpar os pecados
Confirmando a tese segundo a qual a Idade Média é a época da história que mais moldou e ainda molda o nosso presente, o papa Francisco lançou mais uma indulgência plenária em referência ao Ano de São José, instituído por ele entre dezembro de 2020 e dezembro de 2021. É a segunda este ano. A indulgência começou a ser usada a partir de 1300 pelo papa Bonifácio VIII para comemorar o primeiro jubileu cristão. A bula referente ao assunto, oferecia ao católico a possibilidade de limpar todos os pecados a quem fizesse uma peregrinação a Roma passando pela porta da Basílica de São Pedro.
Pra quem acredita, a limpeza dos pecados, através da indulgência, coloca a pessoa em excelentes condições de transitar no além, pois sua alma escaparia do inferno, iria direto para o paraíso sem precisar passar pelo purgatório onde o católico queima as faltas cometidas em vida com sofrimento.
Desmoralizada com o tempo, pois passaram a ser vendidas, as indulgências fomentaram a grande cisma da Igreja ocorrido no século XVI com o rompimento de Martinho Lutero, fundador do Protestantismo. A indulgência foi retirada da prática religiosa pelo Concílio Vaticano II na década de 1960. No entanto, retornou pelo papa João Paulo II que autorizou os bispos a oferecerem essa anistia aos pecados no ano 2000, como parte das comemorações do milênio da igreja. Nesse caso era necessário passar pelas portas da Basílica de São Pedro, em Roma. Depois, o papa Bento XVI tornou as indulgências plenárias usáveis em datas religiosas como o jubileu da Igreja como ocorria no passado. Em 2015, ocorreu mais uma flexibilização: uma indulgência plenária beneficiou os que passassem pelas Portas da Misericórdia, instaladas simbolicamente em basílicas de todas as partes do mundo. Na Bahia, a escolhida foi a Basílica do Bonfim. Milhares de baianos passaram pela porta da misericórdia no ano em que ela ficou aberta para limpar os pecados.
No início deste ano de 2020, o papa Francisco já havia instituído uma indulgência plenária para as vítimas do corona vírus seguindo as regras usuais: a confissão dos pecados, assistir missa contrito e prometer não pecar mais. Agora, indulgência referente ao Ano de São José segue parâmetros semelhantes. Para se beneficiar dela é preciso meditar “por pelo menos 30 minutos a oração do Pai-Nosso”, ou participar de um retiro espiritual, mesmo por um dia “que inclui uma meditação sobre São José”. Para quem acredita, é preciso lembrar que a indulgência apaga apenas os pecados passados, não os que, eventualmente, sejam cometidos no futuro pelo católico.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.
Uma sociedade cruel e piedosa
A emotividade do homem medieval se traduziu em atos extremamente cruéis por um lado e surpreendentemente piedosos por outro. Passo a palavra ao historiador holandês Johan Huizinga que, nas suas pesquisas, recolheu uma série desses eventos radicais que revelam um pouco da alma da Idade Média.
Impressionou o historiador a crueldade judicial em certos países e a satisfação do povo em aceitá-la bem como a sua brutalidade e malvadez. A tortura e as execuções eram assistidas pelos espectadores como as diversões de uma feira. "No século XV, os cidadãos da cidade belga de Mons compraram de uma província vizinha, por um alto preço, um salteador condenado à morte para terem a satisfação de o ver ser esquartejado, com o que o povo se divertiu mais do que se um novo corpo santo se tivesse erguido de entre os mortos».
Houve um período em que se negava aos sentenciados o golpe de misericórdia, que eles imploravam, "para que o povo pudesse continuar a deleitar-se com os seus tormentos".
Na França e na Inglaterra existia o costume de recusar a confissão e a extrema-unção a qualquer criminoso condenado à morte. Os sofrimentos e o medo da morte eram agravados com a certeza da condenação às penas eternas. Ou seja, a pessoa não podia nem ter a esperança em um pósvida, ante a perversidade dos seus carrascos.
Huizinga cita a história de um pobre salteador enforcado em Paris em 1427. “No momento em que ele ia ser executado o grande tesoureiro do regente apareceu em cena e exprimiu o seu ódio contra ele; proibiu que se confessasse apesar dos seus rogos; subiu a escada atrás dele, insultou-o, bateu-lhe com uma bengala e espancou o carrasco por exortar a vítima a pensar em salvação”. Essa pressão fez com que o carrasco, amedrontado, apressasse o trabalho. Com isso a corda partiu-se, o pobre malfeitor caiu, quebrou uma perna e as costelas. E, mesmo assim, foi obrigado a subir novamente a escada do cadafalso para ser enforcado.
Na cidade de Paris, em 1425 ocorreu um jogo, certamente criada por alguma mente doentia. Os cidadãos reuniram numa praça quatro mendigos cegos e cada um recebeu um porrete. Junto deles soltaram um porco para que fosse morto a pauladas. Quem conseguisse matar o porco levaria a carcaça que alimentaria o mendigo vencedor por um mês. O resultado dessa competição bizarra foi a cena de quatro mendigos cegos, armados de paus, se espancando uns aos outros na tentativa de matar o porco, tudo para a diversão da turba.
Os exemplos de caridade e piedade também surgiam em meio a toda essa violência. Em Paris, no ano de 1411 o senhor Mansart du Bois, condenado a morte e levado ao local da execução, recebeu apelo de perdão comovido do carrasco que iria executá-lo, pois era o costume nesta época. O condenado não só lhe concedeu o perdão de todo o coração, como ainda pediu que o algoz o abraçasse e os dois choraram copiosamente junto com a multidão que assistia.
Conforme Huizinga talvez, inconscientemente, houvesse um forte e direto sentimento de piedade e de perdão nas pessoas que, de quando em quando, alternavam com a extrema severidade. Em vez de penalidades lenientes, aplicadas com hesitação, a Idade Média só conhecia dois extremos: a inteireza da punição cruel ou o perdão. Isso explica, por exemplo, a comutação de algumas condenações de bruxaria que levariam o suposto culpado à fogueira. “Quando perdoam ao condenado, o problema de ele merecer o perdão por alguma razão especial raramente é posto, porque o perdão tem de ser gratuito, tal como o perdão de Deus”, escreve o historiador, um dos grandes medievalistas que nos deixou uma obra rica em detalhes.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.