'Senti uma gratidão pela ciência', diz baiana imunizada com a Coronavac
Numa aldeia iluminada pelo luar em Euclides da Cunha, no sertão baiano, a menina Vanuza Kaimbé lia o que estava escrito nas estrelas. Os astros diziam lá no céu que sua missão era a de ajudar pessoas, indígenas assim como ela. Levaria humanidade, vontade de sonhar e muito trabalho por onde passasse. Deixou o sertão e foi para São Paulo aos 12 anos, junto com sua família. O objetivo era bem definido: 'vou juntar dinheiro, estudar e voltar para ajudar meu povo'.
Assim foi feito: a menina cresceu, deixou de lado o sonho de ser médica e se tornou assistente social. Ajudou grupos indígenas em todo país, criando o Projeto Pindorama, financiando bolsas de estudos para indígenas entrarem na universidade. Líder da aldeia multiétnica Filhos Dessa Terra em Guarulhos-SP, ela viu sua atuação se tornar ainda mais importante durante a pandemia, quando seu trabalho ajudou a encontrar financiamento para realização de testagens nas aldeias e encaminhar indígenas a hospitais, além de conseguir alimentos e fazer com que os seus não passem necessidade. Ela tem nome e sobrenome: Vanuza Kaimbé. Indígena. Mulher. Guerreira. E a primeira baiana a ser vacinada no Brasil contra o novo coronavírus.
Além de assistente social, Vanuza, 50, é técnica de enfermagem e recebeu no último domingo (17) a primeira dose da Coronavac, vacina desenvolvida pelo Instituto Butantã e que teve utilização emergencial aprovada pela Anvisa no mesmo dia. Enquanto estava sentada, com suas vestes e cocar, e recebia a vacina, ela conta que só conseguia pensar numa coisa: como era estranho sentir esperança depois de um ano tão difícil e como ela quer que outras pessoas tenham a mesma oportunidade que estava tendo ali.
"Eu senti uma gratidão pela ciência, que tem sido tão atacada nos últimos anos. Depois disso, pensei que foi um sonho, mas me senti solidária pelas pessoas que não tiveram a oportunidade que tive de estar imunizada. Ficou a esperança para que isso venha para outros brasileiros também. Foi uma emoção imensa", disse em entrevista ao CORREIO.
Os quase 12 meses que já se passaram desde o início da pandemia no Brasil foram muito difíceis para Vanuza. Entre os vários perrengues que via o país passar, teve os seus próprios. Testar positivo para a doença se tornou pequeno comparado ao fato de ter escutado a voz do primo no telefone, em abril de 2020, ligando para avisar que iria morrer. Aquele não foi o único familiar que ela perdeu desde então: outro primo moreu num leito de UTI e um tio morreu com as sequelas deixadaspela enfermidade. Vendo tudo isso, chegou a pensar que ninguém sobraria vivo no país.
Os momentos de morte também eram doloridos. Por conta da necessidade de isolamento, os rituais não podiam ser realizados e isso dói muito na assistente social. A voz embarga e o lamento é sincero quando toca no assunto.
A aldeia onde vive foi fundada pela própria Vanuza em 2002. Multiétnica, a ideia há quase duas décadas era criar uma aldeia fora do convencional, recebendo indígenas pobres. Ainda hoje, muitos vivem trabalhando na construção civil ou dependem de eventos e artesanato para levar dinheiro para dentro de casa.
Atividades praticamente paralisadas durante a pandemia, comprometendo diretamente a vida de 20 famílias e aproximadamente 75 pessoas. "Mobilizei a minha rede de amigos para fazer a testagem. 70 pessoas moram lá, 45 foram testadas e 7 deram positivos. Eu inclusive. Também fizemos campanha para testar os indígenas que moram fora das aldeias. Houve aldeia que quase 50% das pessoas testaram positivo", disse.
Segundo os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 45.807 indígenas foram infectados e 923 morreram em 161 povos no país. Vanuza acredita que esse número seja extremamente subnotificado: não são raros os casos de indígenas que dão entrada em hospitais e acabam registrados como pardos ou brancos.
"É uma tristeza muito grande a gente não enterrar nossos mortos, com nossos virtuais e ver na certidão de óbito que não somos indígenas. Tá lá: pardo, branco. Isso é muito doloroso, muito triste para nosso povo", afirmou.
Por conta de todo este cenário de tristeza e desespero, a vacina surge na vida de Vanuza como um símbolo de esperança. Não somente para ela, como para todo o povo brasileiro. Um dia após ser vacinada, ela contou que não sentiu nenhum efeito colateral e passa longe de uma metamorfose para virar jacaré. Por conta disso, aconselha: quem tiver a oportunidade de se imunizar, que o faça.
"Eu sou otimista. Acredito que o povo brasileiro vai acordar, nós vamos valorizar a educação, a ciência porque no momento valorizamos desinformação e políticos ineficientes. Seremos um país acolhedor, solidário, guerreiro e trabalhador novamente"
Bahia no peito
Euclides da Cunha é um município que tem na luta uma parte fundamental da sua história. O nome do município é em homenagem ao jornalista e escritor que relatou as sangrentas batalhas da Guerra de Canudos, mais especificamente a quarta expedição militar que foi até o distrito, à época fazendo parte do município de Monte Santos, para derrubar as forças do revolucionário Antônio Conselheiro. Tudo está descrito no livro Os Sertões, clássico da literatura brasileira.
Foi neste município onde Vanuza nasceu e começou a sua adolescência. Sua aldeia, Massacara, de etnia Kaimbé, fica por lá. Sempre que pode, ela junta uma grana e retorna para suas origens, de onde saiu há quase 33 anos: o lugar favorito no mundo, conforme diz a própria Vanuza.
Logo depois da sua terra, um outro lugar ocupa o coração da assistente social. E enche seu peito de paz e alegria: a Aldeia Hippie de Arembepe, no Litoral Norte. "Não são meu povo, mas a aldeia hippie é meu lugar preferido. Lá não tem energia elétrica, se vive de forma mais simples e então meu coração bate forte quando chego à Aldeia", diz.
A Aldeia Hippie tem cerca de 50 anos de existência e já recebeu uma série de visitantes ilustres: desde ícones estrangeiros como a cantora Janis Joplin e o vocalista dos Rolling Stones, Mick Jagger, até estrelas nacionais como Caetano, Gil, Rita Lee, e, agora a primeira baiana vacinada contra o coronavírus. Ainda hoje o espaço serve como inspiração para quem busca se afastar das metrópoles e seguir a famosa filosofia do paz e amor. Cerca de 40 pessoas compõem a população da Aldeia.
Foi por lá onde ela passou a virada de ano. Passeou pelas praias do Litoral Norte: entre Guarajuba, Arempebe e Barra do Jacuípe. Com o barulho do mar, ou dos rios, aproveita para sonhar com um futuro melhor, se reconectar com aqueles que já foram e criar fôlego. Afinal de contas, há sempre mais uma batalha para lutar.