Imagine o desaparecimento de um patrimônio que não pode ser encontrado em qualquer outro lugar do planeta. A extinção de animais, plantas e produções que só existem em uma região. É para este cenário que o Brasil, em especial o Nordeste, caminha através do desmatamento da Caatinga, bioma exclusivamente nacional. A Bahia já perdeu territórios que somam a extensão de 2 milhões de campos de futebol. O valor traduz a maior redução de hectares das formações savânicas da Caatinga entre todos os estados, de 1985 a 2020, segundo a rede colaborativa MapBiomas.

No total, a Bahia representa 16,96% do total de área queimada entre os nove estados em que o bioma se encontra - Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e norte de Minas Gerais. De acordo com um estudo da rede, dos 10 municípios que mais perderam vegetação natural na Caatinga, oito são baianos.

O município de Campo Formoso, localizado no norte da Bahia, lidera a lista, com perda de 80 mil hectares, seguido de Serra do Ramalho, Bom Jesus da Lapa, Itaberaba, Rodelas, Macururé, Queimadas e Jeremoabo. Completam a lista Petrolina, em Pernambuco, e Jaíba, em Minas Gerais. Segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA), a extensão do bioma é de 844.453 km².

Em busca de esperança, pesquisadores das federais do Rio Grande do Norte, do ABC e da USP procuraram mapear áreas prioritárias de restauração da Caatinga. O estudo, desenvolvido entre 2014 e 2021, foi publicado neste ano. O foco foi buscar locais importantes para o ecossistema, tanto em termos de proteção de espécies de plantas ameaçadas de extinção, quanto para facilitar a movimentação das espécies no bioma.

Na pesquisa, 939 das bacias da Caatinga são consideradas de alta prioridade para restauração, sendo 86 de prioridade máxima. A Chapada Diamantina é uma das áreas prioritárias citadas no estudo. Para o autor sênior do estudo e professor associado do Departamento de Ecologia da UFRN, Carlos Roberto Fonseca, a região é “uma das áreas mais importantes de toda Caatinga”. Isso porque, das 350 espécies de plantas ameaçadas do bioma no Brasil, muitas se encontram no território baiano. Uma única microrregião na Chapada abriga 106 espécies ameaçadas de extinção, explica.

“Em termos de números impactantes para a Bahia, descobrimos que uma pequena bacia hidrográfica perto da Chapada Diamantina tem 106 plantas ameaçadas de extinção. E esta área deve ter toda a atenção do governo estadual”, aponta.

Segundo o professor, o Boqueirão das Onças, parque nacional situado na Bahia, é um ponto positivo, sendo “a área mais íntegra da Caatinga como um todo''. O local está em posição favorável, quando comparada aos exemplos da pesquisa, que são meio-termo entre a desertificação, estágio avançado de degradação, e o processo natural de sucessão vegetal, quando a vegetação ainda é capaz de se recuperar naturalmente.

O pesquisador José Alves Siqueira, doutor em biologia vegetal pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), concorda. “É a última grande área selvagem de todas as caatingas do Nordeste brasileiro”. “Pesquisas iniciadas em 2006 apresentam uma flora rica, com mais de 900 espécies de plantas reunidas em 120 famílias botânicas, com espécies endêmicas da Caatinga, ameaçadas de extinção e até novas espécies que serão apresentadas brevemente à comunidade científica e que já se encontram no limiar da extinção”, informou Siqueira.

A extinção é um dos efeitos do desmatamento. Caso as áreas apontadas não sejam restauradas, haverá o empobrecimento do solo e desaparecimento da Caatinga. “São plantas micro endêmicas, só ocorrem em uma pequena região, espécies únicas que a gente tem que tomar cuidado. Se não fizermos nenhuma ação, vamos ver o desaparecimento dessas espécies. Com as mudanças globais as espécies não vão conseguir se movimentar e vão estar desaparecendo”, afirma Carlos Roberto Fonseca.

As comunidades locais também são afetadas. Sobretudo, os donos de pequenas propriedades cuja plantação é a principal fonte de renda. A trabalhadora rural, Cátia Machado, de 58 anos, vive da agricultura familiar em Uibaí, norte da Bahia, e é prejudicada pelo processo de queimada que atinge seu plantio. “Eu vivo um choque. É uma situação complicada, principalmente, quando começam a colocar fogo aqui na roça da gente. Queima a mata todo e tem prejuízo porque o fogo sobe”, afirma.

O proprietário rural, Gutemberg Paiva, de 60 anos e também de Uibaí, conta que teve 40% da área destruída pelo fogo. “A situação da Caatinga na nossa região é crítica; Há muito desmatamento. As queimadas [acontecem] praticamente todos os anos e o pessoal que queima não é punido. Por volta do mês de agosto de 2020 [a propriedade] pegou fogo que queimou praticamente toda minha área. Tudo que é vegetação e ser vivo da Caatinga foram embora”, reclama.

A queimada, ato de colocar fogo em plantio como preparação do solo é feita por produtores vizinhos de Cátia. Sem controle, as chamas atingem outras produções e ainda empobrecem o solo, dificultando o processo de recomposição vegetal e se associando ao desmatamento da Caatinga.

Para Ricardo Dobrovolski, professor no Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia e doutor em Ecologia e Evolução, a recuperação também é dificultosa pois sua taxa de crescimento é lenta até mesmo pela restrição da água. “A região de Irecê, onde teve historicamente a produção de feijão, hoje é muito impactada. Produz muito pouco [porque] sofreu colapso ambiental pela forma que a agricultura foi desenvolvida”, exemplifica.

O impacto da agropecuária

O processo de degradação ambiental é histórico e acentuado desde a colonização portuguesa. No entanto, práticas ainda reverberam o costume. A exemplo do pastoreio com carga excessiva e agricultura escalonada. Segundo especialistas, a agropecuária é a principal causa do desmatamento na Caatinga. Nas últimas 3 décadas houve incremento em áreas de uso agropecuário nas áreas naturais do bioma. Ao analisar a cobertura e uso de terra da vegetação, um estudo do Mapbiomas quantificou um aumento de 1456% da área de agricultura entre 1985 e 2020

O autor sênior do estudo, Carlos Fonseca, lembra que “boa parte das áreas prioritárias de restauração [citadas na pesquisa] estão dentro de propriedades privadas", ressalta acerca da degradação presente nas terras de grandes proprietários pecuaristas.

“A agricultura é a maior responsável pela remoção da vegetação nativa. Isso é válido para todos ambientes terrestres no mundo. No Brasil por exemplo já desmatou aproximadamente 30% da vegetação nativa”, salienta Ricardo Dobrovolski.

Para Fonseca, o ideal seria o apoio e respeito dos proprietários às terras. Ambientalistas, no entanto, acreditam que este cenário só será possível com maior apoio do governo na fiscalização. Coordenador no MapBiomas Caatinga, Washignton Rocha atenta para o monitor de fiscalização de desmatamento do projeto, disponível para Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará e São Paulo. Através do monitoramento é possível que a sociedade civil exerça pressão nos representantes públicos.

Atuação pública

O Coordenador do grupo interdisciplinar de estudos sobre a Caatinga, Aurélio de Lacerda denuncia a falta de fiscalização governamental e desinteresse na proteção ambiental. "A Constituição de 1988 tratou dos outros biomas, como Pantanal, Cerrado, Mata Atlântica, mas não constitucionalizou a Caatinga. Já é uma irresponsabilidade das forças políticas. Falta proteção", diz.

Para entender quais atividades estão sendo feitas para cuidado com a Caatinga, a reportagem entrou em contato com o Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente e Urbanismo (Ceama) e as prefeituras das oito cidades com destaque negativo na região baiana - Campo Formoso, Bom Jesus da Lapa, Itaberaba, Rodelas, Macururé, Queimadas, Jeremoabo e Serra do Ramalho. Apenas a última retornou o contato.

“A Secretaria do Meio Ambiente tem projetos de recuperação de áreas degradadas na Caatinga e no alagadiço. Temos o viveiro Semeia com mudas nativas do nosso bioma. As mudas são doadas aos produtores rurais para que sejam plantadas em seus lotes. [Além disso], temos o banco de sementes no município”, diz o diretor do Meio Ambiente, José Nunes.

Iniciativas de conservação

De acordo com informações do Centro Nordestino de Informações sobre Plantas da Associação Plantas do Nordeste são 27 unidades de conservação na Bahia. Do total, 12 se encontram na depressão sertaneja meridional, 8 no complexo da Chapada Diamantina e o restante está espalhado pelo estado. Para especialistas, é preciso mais incentivos do governo federal, estadual e de cada município.

O "Recaatingamento" é um plano de manejo sustentável que visa recuperar e conservar áreas da Caatinga em dez comunidades de Juazeiro. O coordenador técnico do órgão que apoia o projeto, o Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) Luís Almeida conta que comunidades de fundo de pasto, grupos que usufruem de áreas de forma compartilhada, passaram a ter as duas principais fontes de renda impactadas pelo desmatamento. Tanto criação de pequenos ruminantes, como produção de produtos de agrobiodiversidade, a exemplo do umbu, começaram a ser afetados pelo ciclo de chuva e solo desfavorável.

O principal desafio do projeto é promover o desenvolvimento sustentável, educando essas famílias produtoras e distanciando a realidade de grandes produtores responsáveis pelo desmatamento. De acordo com Luís, 31 áreas já foram "recatingadas" ou estão em processo. As ações são feitas em parceria com o governo estaduais, empresas privadas e órgãos internacionais

O Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) e e Secretaria do Meio Ambiente do governo da Bahia foram contatados pela reportagem acerca das atuações ecológicas, porém, não retornaram as solicitações.

Publicado em Bahia