Ter gravado em todos os documentos um nome que respeite quem se é não tem preço, principalmente quando se trata de pessoas transgênero e suas lutas por reconhecimento. Na Bahia, por exemplo, os registros de identidade de homens trans cresceram mais de 180% nos últimos dois anos. O dado foi obtido a partir de levantamento da reportagem junto ao Departamento de Polícia Técnica (DPT).

De janeiro a junho de 2022, o número de novos RGs de homens trans subiu de 82 para mais de 200, quando comparado ao mesmo período de 2020. Advogado de formação e chef de cozinha, Victor Hugo Vilas Boas, 26, iniciou sua transição de gênero somente aos 20 anos, mas desde muito antes se percebia homem. Ele conta que enfrentou dificuldades justamente em relação a alteração do nome de registro, que na época em que ele fez o processo, ainda era por via judicial.

"Mas o STF [Supremo Tribunal Federal], através de decisão ADI 4275/2018, reconheceu que a alteração podia ocorrer diretamente em cartório, o que facilitou", conta o jovem, nascido em Santo Estêvão, a 120 km distante de Salvador. Além das dificuldades legais e de registro, Victor enfrentou transfobia em sua cidade natal. Agressões que iam desde a negação de emprego até um espancamento por duas horas.

Ele encontrou apoio no Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap), em Salvador, onde também conseguiu ajustar seus documentos, em julho de 2019, se tornando o primeiro transgênero registrado em Santo Estêvão.

"Ter a retificação dos documentos nos dá existência, reconhecimento e minimiza os danos sofridos. Ao lidar com transgêneros não-retificados [que ainda conservam o antigo nome recebido no nascimento e que não reflete sua verdadeira identidade], empresas e patrões atuam com resistência para lidar com a demanda burocrática na contratação. Além disso, de cunho pessoal, nos dá a certeza de que estamos reconhecidos pelo Estado pela forma como somos e queremos ser tratados: como homens", avalia o chef, que deixou o Brasil e hoje mora em Portugal.

"Não é nosso nome social, é nosso nome, nossa vida, é nosso e não apenas social, mas sim político. O que temos de mais pessoal na nossa vida é nosso nome, se isso for negado nós não existimos diante da sociedade e da vida", completa.

Em busca da retificação
Estudante de medicina veterinária, Nicolas Barreto Marcelino Pereira está correndo atrás da retificação. O jovem de 22 anos conseguiu levantar os documentos necessários para fazer a alteração do nome neste ano e está passando por dificuldades inerentes ao processo. Ainda assim, se mantém animado para conseguir o objetivo final. Ver o aumento no número de RG 's emitidos na Bahia é um motivo de alento para Nicolas porque ele acredita que o crescimento ilustra quantas pessoas conseguiram seguir com “uma nova vida”, sendo quem elas são.

Na Bahia, há isenção dos custos de averbação e adequação de nome de pessoas trans nos cartórios de registro civil de pessoas naturais. A gratuidade foi concedida pelo Tribunal de Justiça da Bahia a partir de uma articulação realizada entre a Defensoria Pública do Estado da Bahia, a Corregedoria do TJ-BA e a Arpen-BA. Nos meses de janeiro, a DPE realiza mutirões para retificar o nome de pessoas trans.

Coordenadora da Especializada de Direitos Humanos da DPE/BA, Lívia Almeida pondera que existem entraves financeiros para a emissão das certidões de protesto, uma vez que as pessoas trans mais pobres não têm condições de arcar com o valor, que chega a R$ 300. Ela pede que o Conselho Nacional de Justiça se pronuncie sobre o pedido de gratuidade das certidões de protesto, realizado pela Defensoria.

Kaio Igor Vasconcellos, 25 anos, conseguiu retificar sua certidão de nascimento via mutirão. Ele estima que gastou cerca de R$ 180 para conseguir o documento. Sua certidão chegou no início desta semana, após dois anos de luta.

O documento retificado nunca foi algo de urgência na vida de Kaio durante um tempo porque buscava, primeiro, se entender como homem trans negro na sociedade. Mas o moço não esconde a felicidade em poder retificar outros documentos ou fazer coisas simples como usar a conta de banco sem se sentir constrangido por estar usando um nome que não lhe pertence.

"O crescimento de registros de homens trans no estado é de imensa representatividade, não só para mim, mas sim para todos que estão nessa luta e todos que vieram antes de nós e que infelizmente tiveram seus direitos negados", assegura o estudante.

Estudante de Filosofia na Uesc, em Ilhéus, Tomas Santos, 31, é conhecido por Tom desde 2018, quando em uma tarde corriqueira, saiu mais cedo da aula para tomar a cerveja de costume com amigos e numa conversa falou como queria ser chamado e quais eram seus pronomes: Ele/Dele.

“Em uma sociedade que tenta nos silenciar e invisibilizar, ter acolhimento e afeto é muito importante para passarmos por esse processo que por vezes pode ser solitário. Aceitei que sou uma pessoa trans, me acolhi, me abracei e o Tom nasceu", recorda ele, que no início da hormonização não teve acompanhamento médico. Nas redes sociais, usou o espaço para falar das vivências da transição de gênero no Instagram e no seu podcast 'Papo T'.

"O ano de 2019 foi de muitas mudanças na minha transição. Consegui alterar o meu nome na certidão, alterei no RG, CPF e, recentemente, no título de eleitor. O momento da certidão foi algo muito emocionante e me toca bastante toda vez que lembro. Foi um renascimento! Ver o nome que escolhi em um papel, ver minha dignidade impressa, foi maravilhoso", contou Tom, valorizando o bom atendimento que recebeu em Itabuna, fundamental para seguir em frente.

Nova lei visa facilitar processo
Até junho deste ano, se uma pessoa tivesse a vontade de mudar de nome, o procedimento só poderia ser realizado quando o interessado tivesse entre 18 e 19 anos e ainda era necessário entrar na Justiça para fazer a alteração. Porém, a nova lei federal (nº 14.382/22) sancionada no dia 27 do mês passado, ampliou o rol de possibilidades para que pessoas com mais de 18 anos façam a mudança diretamente nos cartórios de Registro Civil.

"Quando fiz minha retificação, o processo estava custando R$ 136. Soube no cartório que, via declaração de hipossuficiência, podia alegar não ter condições de arcar com o processo e só paguei R$ 40 da tramitação de um cartório para outro", afirmou Tom.

Para fazer a mudança, é necessário que a pessoa interessada compareça à unidade dos cartórios com seus documentos pessoais (RG e CPF) e se informe sobre quais certidões deverão ser entregues a depender do tipo de procedimento. A nova certidão deve ser expedida em cerca de cinco dias e o procedimento custa em média R$200.

Agora, qualquer pessoa pode alterar o nome independente de prazo, motivação, gênero, juízo de valor ou de conveniência, salvo suspeita de coação, fraude, falsidade ou simulação. Após a mudança, cabe ao Cartório de Registro Civil comunicar a alteração aos órgãos expedidores do documento de identidade, CPF e passaporte. Assim como ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

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