Mais de 300 mil crianças baianas ainda não tomaram vacina contra poliomielite
Um velho inimigo das crianças voltou a assombrar as autoridades de saúde. Há seis anos, a Bahia não atinge a meta de 95% de cobertura vacinal contra o poliovírus, causador da poliomielite. No momento, mais de 300 mil crianças baianas, de 1 a 5 anos, estão desprotegidas contra o vírus que provoca a paralisia infantil. Para tentar recuperar os índices de imunização, foi iniciada a Campanha Nacional de Vacinação contra a Pólio e de Multivacinação, que vai até o dia 9 de setembro.
Em Salvador, as 55,6 mil crianças que ainda não estão imunizadas vão poder ser vacinadas em 156 salas instaladas nos postos da rede básica de saúde da capital. O público total esperado na cidade é de 649 mil crianças e adolescentes. Em todo o país, serão disponibilizadas 40 mil salas de imunização. A reportagem procurou a Secretaria Estadual da Saúde para ter um número específico de postos na Bahia, mas a pasta afirmou que determinar os locais de vacinação é uma atribuição de cada município.
A cobertura contra a pólio no último ano na Bahia foi de 61,2%, mais de 30% abaixo do esperado. Em Salvador, a taxa foi de 63,43%, um pouco acima da média nacional, que, segundo os últimos dados do Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, não chegou sequer aos 50% do público-alvo neste ano.
Apesar de a poliomielite ter sido oficialmente erradicada do país em 1994, com o último caso registrado em 1989, os especialistas temem que com a baixa cobertura vacinal o vírus volte a circular no país. "Nós eliminamos o vírus da pólio aqui no Brasil (nas Américas), mas com pouca vacinação, se eu vou em qualquer país onde esteja funcionando [o vírus], e não estou vacinado, posso trazer esse vírus e ele começar a circular entre crianças e mesmo adultos que não têm vacinação. Isso nos preocupa muito enquanto profissionais da saúde”, afirma a infectologista e professora da Ufba Glória Teixeira.
Alerta de risco
A baixa cobertura vacinal levou a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) a incluir o Brasil na lista de países da América Latina com alto risco de pólio. No período entre 1979 e 1989, a letalidade média da doença era em torno de 12%, levando a mais de 300 mortes na década de 1970. Nas formas graves da doença, desenvolvidas especialmente em crianças com menos de cinco anos, o vírus afeta o sistema nervoso e pode causar uma fraqueza muscular que originou o termo "paralisia infantil", um dos nomes populares da doença.
Marielza Macedo Santos, 63 anos, nasceu em Iaçu, no interior da Bahia, e perdeu o movimento das pernas ainda com 1 ano e 4 meses, em 1959. “Naquela época, aqui no interior, não tinha vacina, só tinha em Salvador. E para levar lá era difícil. Comecei com febre alta, me levaram para Itaberaba, Feira de Santana e depois para Salvador, quando diagnosticaram. O meu atacou os membros inferiores e escoliose — fiz 17 cirurgias e melhorou um pouco, eu era toda torta. Por isso mesmo eu tenho problemas no pulmão, um lado ficou apertado”, conta a professora aposentada.
Marielza ressalta que apesar dos problemas de saúde derivados da pólio, ela leva uma vida produtiva, mas reconhece que a vacina poderia ter mudado sua vida. “Com certeza, se [a vacina] chegasse ao interior, minha mãe me dava e eu não estava na cadeira de rodas. Minha vida estaria em outra dimensão. Fiz três anos de pedagogia e acabei desistindo faltando dois por causa da acessibilidade [na faculdade]. Eu levo uma vida normal, mas a gente vê as dificuldades que tem. Se tem como não acontecer isso, por que não faz [vacinar as crianças]? Hoje a vacina está aí, gotinha que não vai doer nada”, diz a professora.
Baixa cobertura
A baixa cobertura vacinal na infância não se reduz à poliomielite. De acordo com a coordenadora do Programa Estadual de Imunização, Vânia Rebouças, desde 2016, nenhuma vacinação teve a meta alcançada na Bahia, que é de 95% de cobertura, exceto para Rotavírus e BCG (90%).
De acordo com ela, isso acende um alerta para o risco do reaparecimento de doenças que antes estavam controladas pela vacinação, sendo as principais o sarampo e a oliomielite. “Há casos de sarampo em quatro estados do Brasil e tem risco de reintrodução da poliomielite, que acende mais um alerta”, afirma a coordenadora, que ressalta que o problema não se restringe a essas duas doenças.
Na Campanha Nacional, que vai até o dia 9 de setembro, também há a atualização da caderneta na multivacinação. Segundo a coordenadora, qualquer adolescente com menos de 15 anos pode procurar os postos de saúde para atualizar seu esquema de vacinas.
Para crianças estarão disponíveis os imunizantes: Hepatite A e B; Penta (DTP/Hib/Hep B), Pneumocócica 10 valente; VIP (Vacina Inativada Poliomielite); VRH (Vacina Rotavírus Humano); Meningocócica C (conjugada); VOP (Vacina Oral Poliomielite); Febre amarela; Tríplice viral (Sarampo, Rubéola, Caxumba); Tetraviral (Sarampo, Rubéola, Caxumba, Varicela); DTP (tríplice bacteriana); Varicela e HPV quadrivalente (Papilomavírus Humano).
Para adolescentes: HPV; dT (dupla adulto); Febre amarela; Tríplice viral; Hepatite B, dTpa e Meningocócica ACWY (conjugada).
Segundo Vânia, a Sesab está articulando com a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) um plano para melhor a cobertura vacinal. Na campanha contra a poliomielite, terá o Dia D nacional de vacinação, em 20 de agosto. “Nós temos aí um desafio de avaliar as cadernetas de vacina de crianças e adolescentes menores de 15 anos, que é uma estratégia pontual para tentar corrigir cadernetas de vacinação", afirma.
A coordenadora lembra ainda que todas as vacinas de rotina podem ser atualizadas a qualquer momento e quanto mais rápido a criança tem acesso aos imunizantes, mais rápido fica protegida.
Falsa sensação de segurança
Especialistas afirmam que os fatores para a diminuição da cobertura vacinal são múltiplos, mas alguns são especialmente citados por todos os ouvidos pela reportagem: falsa sensação de segurança de que as doenças desapareceram e não voltam mais, pandemia, fake news e mudanças no perfil da população. A falta de campanhas que chamem à vacinação e o “desaparecimento” do Zé Gotinha também explicam.
“Realmente temos visto queda nas coberturas vacinais de forma geral, do calendário infantil, desde 2017. Mas caiu muito mais com a pandemia. Essa queda já vinha há um tempo e tinha vários fatores, principalmente o sucesso da própria vacina. Na medida que as famílias, as crianças, não veem mais a doença, pensam que podem abrir mão da vacina”, explica a infectologista Glória Teixeira.
Outra desmotivação para vacinar são as notícias falsas. “Notícias capciosas que impedem as pessoas de proteger sua saúdes mesmo tendo disponibilidade nos postos — ‘vacina faz mal, vacina dá outra doença, vacina faz você virar jacaré’, parece coisa da Idade Média”, diz a especialista.
"Diminuiu muito o apelo nacional do Ministério da Saúde para a mobilização por vacina e tem um movimento antivacina do próprio dirigente máximo [o presidente Jair Bolsonaro] de não querer se vacinar contra a covid. É uma situação completamente diferente da que vívíamos antes de 2019”, afirma a infectologista.
A professora reclama que o Zé Gotinha, personagem criado para incentivar a vacinação, não aparece mais. “Quando a gente fazia a campanha, as crianças iam encontrar o Zé Gotinha. Era tão bonito, significativo, que uma criança já chamava outra para se vacinar. Nós precisamos retomar esse personagem para essas crianças”.
A coordenadora de imunização de Salvador, Doiane Lemos, afirma que além da falsa sensação de segurança, o Ministério da Saúde aponta mudanças no perfil da população. “Mulheres que antes não trabalhavam e podiam levar as crianças aos postos, hoje são fonte econômica da casa”, diz. Os horários para a vacinação comumente se dão em períodos de trabalho, 8h às 17h. A Secretaria Estadual da Saúde afirma que incentiva as secretarias municipais a criarem horários estendidos.
História da Pólio:
O vírus no Brasil - A presença da poliomielite é registrada no Brasil desde o fim do século XIX, provocando numerosos surtos e epidemias no século XX. Embora a maioria dos países do mundo tenham eliminado a doença, o vírus ainda existe e a pólio é registrada em algumas partes do mundo. O Ministério da Saúde, no lançamento da campanha de imunização deste ano, lembrou que a pólio foi diagnosticada em uma criança de Nova York (EUA) recentemente;
O primeiro surto - Dilene Raimundo do Nascimento é a organizadora do livro ‘A História da Poliomielite’, publicado em 2010. No mesmo artigo do site da Fiocruz acessado pela reportagem, a especialista detalha que em 1911, o médico Fernandes Figueira fez a primeira descrição de um surto de poliomielite no Brasil, no Rio de Janeiro. Em 1930, epidemias também foram registradas em São Paulo e outras capitais;
Opinião pública - Na década de 1950, a poliomielite chamou a atenção da opinião pública brasileira, quando as epidemias cresce-
ram e se espalharam por diversas cidades. A maior epidemia da doença no país já registrada ocorreu no Rio, em 1953, com 746 casos. A doença gerava grande medo pelas graves consequências causadas numa parcela das pessoas atingidas, que perdiam o movimento das pernas, em sua maioria;
As vacinas - Os surtos de pólio nos anos 1950 levaram à mobilização da comunidade científica, que desenvolveu, ainda naquela década, as duas vacinas contra a doença usadas até hoje. O pesquisador e médico norte-americano Jonas Salk foi o responsável pela primeira, contendo o vírus inativado e injetável. A segunda, em gotinhas, e que traz o vírus atenuado, foi criada pelo pesquisador polonês Albert Sabin.
Erradicação - A historiadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), relembra no site da instituição que a erradicação da paralisia infantil em território nacional demandou um enorme esforço institucional desde o início da década de 1980 e foi uma grande conquista da saúde pública no início da década de 1990. O ultimo caso registrado no Brasil é de 1989 e em 1994, a pólio foi considerada erradicada por aqui, mas para se manter assim, é preciso manter a cobertura vacinal, porque o vírus não desapareceu;
*Fonte: Site da Fiocruz
Garanta a Proteção:
O quê: Vacinação em Salvador
Quando: De 8 de agosto até 9 de setembro, das 8h às 17h
Onde: Qualquer posto de saúde da rede básica
Vacinas oferecidas: Poliomielite para menores de 5 anos e Multivacinação para menores de 15 anos
Fiocruz alerta para risco de volta da poliomielite no Brasil
Juntamente com os demais países da Região das Américas, o Brasil foi certificado, pela Organização Mundial da Saúde, como livre da poliomielite no ano de 1994. Contudo, a doença, também chamada de pólio ou paralisia infantil, corre grande risco de ser reintroduzida no país. A avaliação é do pesquisador Fernando Verani, epidemiologista da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).
Os motivos para o alerta são vários. O principal deles é a baixa cobertura vacinal. Apesar da gravidade das sequelas provocadas pela pólio, o Brasil não cumpre, desde 2015, a meta de 95% do público-alvo vacinado, patamar necessário para que a população seja considerada protegida contra a doença.
A poliomielite é uma doença infecto-contagiosa aguda causada pelo poliovírus selvagem responsável por diversas epidemias no Brasil e no mundo. Ela pode provocar desde sintomas como os de um resfriado comum a problemas graves no sistema nervoso, como paralisia irreversível, principalmente em crianças com menos de cinco anos de idade.
No país, duas vacinas diferentes são oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para a imunização da pólio: a inativada e a atenuada. A vacina inativada deve ser aplicada nos bebês aos 2, 4 e 6 meses de idade. Já o reforço da proteção contra a doença é feito com a vacina atenuada, aquela administrada em gotas por via oral entre os 15 e 18 meses e depois, mais uma vez, entre os 4 e 5 anos de idade.
Segundo o Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), a cobertura vacinal com as três doses iniciais da vacina está muito baixa: 67% em 2021. A cobertura das doses de reforço (a de gotinha) é ainda menor, e apenas 52% das crianças foram imunizadas. Nas regiões Nordeste e Norte, a situação é ainda pior, com percentuais de 42% e 44%, respectivamente, para a imunização completa com as cinco doses.
Risco de reintrodução
Uma cobertura vacinal baixa aumenta em muito as chances do retorno do vírus ao país. Por exemplo, em fevereiro de 2022, as autoridades do Malawi, na África, declararam um surto de poliovírus selvagem tipo 1, após a doença infecto-contagiosa ser detectada em uma criança de 3 anos. A menina sofreu paralisia flácida aguda, uma das sequelas mais graves da enfermidade, a qual, muitas vezes, não pode ser revertida.
O último caso de poliomielite no país africano havia sido notificado em 1992, e a África toda declarada livre da doença em 2020. A cepa do vírus responsável por esse caso está geneticamente relacionada à cepa circulante no Paquistão, um dos dois países do mundo, junto com o Afeganistão, onde a pólio continua endêmica.
“Enquanto a poliomielite existir em qualquer lugar do planeta, há o risco de importação da doença. É um vírus perigoso e de alta transmissibilidade, mais transmissível do que o Sars-CoV-2, por exemplo. Estamos com sinal vermelho no Brasil por conta da baixa cobertura vacinal, e é urgente se fazer algo. Não podemos esperar acontecer a tragédia da reintrodução do vírus para tomar providências”, afirmou Fernando Verani.
A opinião é compartilhada pela pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “A pandemia veio acentuar ainda mais a vulnerabilidade das populações em relação às doenças infecciosas. Hoje, o deslocamento de pessoas é muito mais fácil e rápido, logo, a possibilidade de circulação do vírus aumenta. Há uma grave possibilidade de a pólio ressurgir no Brasil, como foi com o sarampo, em 2018. Por isso, precisamos chamar a atenção para o risco e para a necessidade de vacinação”.
O virologista Edson Elias, chefe do Laboratório de Enterovírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), explicou que a vacinação adequada evita, ainda, o perigo de mutação do vírus atenuado da pólio. “Quando a população está com baixa cobertura vacinal, há o risco de mutação do vírus, ao ser transmitido de pessoa para pessoa, tornando-se uma cepa agressiva”, ressaltou.
Sistema de vigilância também é fundamental
De acordo com Fernando Verani, também é motivo de preocupação a pouca eficiência nas estratégias de vigilância da doença para a contenção de possíveis surtos, como foi feito no Malawi. No país africano, o caso da menina infectada foi rapidamente identificado e a população local foi revacinada contra a poliomielite, impedindo uma epidemia viral.
“Há cerca de três anos, os protocolos de vigilância epidemiológica ficaram enfraquecidos no Brasil. Eles têm a finalidade de detectar e prevenir as doenças transmissíveis. As amostras de esgoto das cidades não têm sido recolhidas com a frequência esperada, e não há a notificação e investigação constante de possíveis casos de paralisia flácida aguda. O país possui os recursos e a expertise para manter a polio erradicada, mas não está tomando as ações necessárias”, disse o pesquisador da ENSP/Fiocruz.
O especialista teme que, caso haja uma importação da doença, o sistema de saúde talvez não consiga agir com a rapidez necessária para reprimir sua disseminação. “Se o vírus for reintroduzido e não houver uma notificação rápida do caso, podemos ter uma epidemia. Com as baixas coberturas vacinais que temos hoje, as crianças estão desprotegidas. Podemos ter centenas ou milhares de crianças paralíticas como consequência”, advertiu o pesquisador da ENSP/Fiocruz.