Atendimento prejudicado: Bahia tem 1,77 médicos para cada 100 mil habitantes
A Bahia tem apenas 26.537 médicos, entre generalistas e especialistas, para atender uma população de quase 15 milhões de habitantes. Isso significa que a cada 100 mil baianos, só existem 1,77 profissionais de medicina. A maioria fica em Salvador – 14.340, o equivalente a 54%. Outros 9.962 estão divididos nas 416 cidades do interior e 2.235 em outros estados. Os dados são do Conselho Federal de Medicina (CFM), atualizados na última sexta-feira (15).
A lavradora Gedilma da Silva, 43, por exemplo, tem que se deslocar, quase que toda semana, de São José do Jacuípe para Salvador, onde sua mãe, Edésia da Silva, 83, faz tratamento contra o câncer, no Hospital Aristides Maltez. O bate e volta é longo: são quatro horas e meia de carro na ida e na volta, ou seja, 9 horas no carona. Às vezes, para dar tempo de chegar no horário da radioterapia, é preciso sair de madrugada.
“Incomoda muito, porque a cidade é distante. É desumano. Seria ótimo e deveria ter algum local mais próximo”, reclama Gedilma. Edésia descobriu a doença há cinco meses, após uma biópsia feita em Feira de Santana. Ela teve que retirar o útero, em cirurgia, mas isso não impediu que o câncer se espalhasse para os ossos. Hoje, ela está acamada, anda pouco, segundo a filha, e sente constantes dores nas costas. É isso que acontece com a falta de especialistas na cidade, diz o secretário de saúde, Clebson Novaes.
“A área de saúde da mulher está muito comprometida, com alta incidência de câncer de útero, e de mama, pela falta de tratamento precoce. O efeito desencadeia lá na frente, com sintomas mais graves e diagnóstico tardio, difíceis de tratar. Precisamos mandar tudo para Salvador. Quando dá, contratamos uma clínica particular, mas tem todo o processo burocrático. Cerca de 50% da população fica desassistida e a gente se sente impotente”, relata o secretário.
As especialidades de ginecologia e obstetrícia e ortopedia são as mais demandadas, mas é difícil de achar alguém que queira o posto. Os pacientes ortopédicos têm que ir ou a Miguel Calmon ou a Ruy Barbosa, a 150 quilômetros de distância, em média. Já a atenção básica é bem estruturada, com médico clínico, enfermeiro, técnico de enfermagem e dentista. Psiquiatra é uma vez na semana para atender os pacientes de saúde mental.
Pela falta de equipamento e equipe, a fila de espera para ressonância chega a 150 pacientes na cidade. Mas a policlínica do governo estadual só libera 10 a 12 vagas por mês. “Tenho que escolher a prioridade da prioridade. É terrível, porque a gente fica sem coragem de dizer não, mas também não pode dizer sim. Ontem, uma moça chorou na minha sala”, conta Clebson Novaes.
Nos últimos quatro meses, foram 219 viagens pagas pela prefeitura para outras cidades por motivos médicos. Além da gasolina, que não está barata, e manutenção dos veículos, a diária do motorista é de R$ 90, o que encarece as contas municipais. “Tenho 130 moradores fazendo tratamento em Salvador, 160 em Feira de Santana, 16 pacientes da Apae que vão, duas vezes por semana, para Jacobina, fora os de hemodiálise, que precisam ir três vezes por semana”, completa o secretário.
Em Catolândia, no Extremo Oeste da Bahia, o especialista também só vem uma vez no mês. Para uma ressonância ou tomografia, é preciso pegar 42 quilômetros de estrada até Barreiras e esperar a demanda acumular. Dermatologistas, ginecologistas e neurologistas são contratados esporadicamente, só para zerar a demanda. Fixos mesmo são dois, um no Posto de Saúde da Família (PSF) da sede e outro na zona rural.
“Ultrassom fazemos aqui, o médico vem uma vez no mês e faz 25 exames. Mas ressonância, tomografia, tudo é em Barreiras. Junta dois ou três pacientes, quando dá para esperar, e vai. Mas quando é urgência e emergência, a gente bota numa ambulância e leva”, descreve o secretário de saúde da cidade, Fábio Toledo.
Em Cravolândia, cidade a cerca de 300 quilômetros de Salvador, a situação é parecida. A secretaria de saúde faz malabarismo: são sete médicos no município, três nos PSFs e quatro no hospital, para 5.300 habitantes – 1,32 para cada cidadão. Dentre as especialidades, estão a de pediatria, cirurgião, anestesiologista e psiquiatra. Os exames feitos lá são os de laboratório e eletrocardiograma.
Não existe cardiologista para fazer a avaliação, é preciso ir para a policlínica do governo estadual ou, se não houver vaga, ir até Jaguaquara, a 37 quilômetros. Toda semana, a secretaria de saúde disponibiliza um carro para os pacientes. Quem precisa fazer quimioterapia, radioterapia e anemia falciforme precisa ir a Salvador, Feira de Santana, Jequié ou Santo Antônio de Jesus. São cerca de 80 pacientes nessa condição na cidade.
“Pagamos, mensalmente, R$ 3 a 4 mil em exames, em Jaguaquara, e mais R$ 3.500 a R$ 4 mil para o laboratório daqui, terceirizado. Fico querendo contratar especialista aqui, para evitar grávida, por exemplo, com barrigão, ficar se deslocamento, toda semana, para Jaguaquara para fazer ultrassom”, conta a secretária da saúde de Cravolândia, Ednalva Mendes.
A falta de especialistas e aparelhos para exames mais complexos é um dos maiores calos no pé de Ednalva. Todos os anos, a secretaria abre chamamento para contratar especializados, mas não recebe respostas. “O médico não quer vir para o interior porque aqui paga mal e a gente não tem como bancar. Minha folha de pagamento de médico está R$ 80 mil por mês. É difícil demais fazer saúde em município pequeno, sem recurso”, desabafa a secretária.
Em Maetinga, no Centro Sul da Bahia, não há especialistas, nem de plantão. Todas as consultas específicas são feitas em Vitória da Conquista, a 100 quilômetros de distância, ou Presidente Jânio Quadros, a 22 quilômetros. “Mandamos uns 15 pacientes toda semana. A gente tenta fazer milagre, porque nossa cota é poucas na policlínica. Quando a gente consegue, é pela reoferta, quando outros municípios não pegam a vaga”, diz a secretária de saúde, Sabrina Souza.
Em Correntina, no Extremo Oeste da Bahia, a prefeitura comprou um ônibus só para transportar os pacientes. Ele vai de duas a três vezes por semana levá-los a policlínica de Barreiras. A partir de novembro, mais um fará três viagens por semana a Bom Jesus da Lapa. São, ao todo, 12 médicos, contratados pelo Programa Mais Médicos, sendo oito fixos, além dos plantonistas. Há a oferta de oito especialidades na cidade. Quem precisa de raio-x, ultrassom, colonoscopia e exames laboratoriais não precisa se deslocar.
Mas, para quem precisa de nutricionista, como Thanara Vasconcelos, 9, filha de Jakeline Vasconcelos, 26, a espera chega a três meses. “Minha filha precisa fazer acompanhamento nutricional pela obesidade, mas ainda estamos aguardando na fila de espera. Seria bom se tivesse aqui, porque quando a gente vai para a policlínica, é de ônibus, depende do pessoal e tem que esperar o último paciente termina o exame, tem despesa, estadia e a gente come lá também, por isso, é mais difícil”, narra Jakeline, auxiliar administrativa.
Qualidade além da quantidade
O diretor da Associação Baiana de Medicina (ABM), Jedson Nascimento, reclama da distribuição dos médicos no interior do estado. “É fruto de uma política que necessita avançar. Estamos avançando, mas a preocupação com a qualidade deve ser premente, antes da preocupação com os números apenas. A qualidade da assistência à população deve ser avaliada, antes de tudo”, avalia.
Ele pontua ainda que a formação acelerada de médicos não é o melhor caminho, pela falta de critérios de qualidade. “Estamos em um caminho equivocado, que resolverá a questão numérica muito rápido, só não sei se da melhor forma”, acrescenta.
Nascimento comenta também que as cidades pequenas precisam saber fixar os especialistas no local. “A presença de especialistas em pequena quantidade se deve à falta de vagas de residência na mesma proporção de formados, mas não só isso. A Bahia, hoje, é um polo formador, mas não quer dizer que os indivíduos fiquem em nosso estado. Muitos fazem residência aqui e vão para outro estado ou voltam para a cidade de origem”, explica Nascimento.
Investimento em regionalização
O presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremeb), Otávio Marambaia, afirma que é preciso regionalizar a medicina. “Não é possível botar estruturas completas de alta e média complexidade em todos os municípios, não haveria dinheiro suficiente. É preciso universalizar a atenção básica, com equipes de saúde da família, com boas condições de trabalho e perspectiva de carreira", orienta.
Ele ainda diz que o ideal é que houvesse quatro especialistas fixos – ortopedia, ginecologia, pediatria e cirurgia geral, em todos os centros regionais. Marambaia também discorda da divisão do número de médicos por habitantes. “O grande problema é a má distribuição dos médicos, que estão concentrados em grandes cidades, e a qualidade do serviço. Não é só colocar mais médicos que o problema está resolvido. É preciso investir em programas e regionalizar”, completa.
Em sua defesa, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) disse que o governo da Bahia investiu, em 2020, mais de R$ 623 milhões em saúde, o maior índice do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul. “No ranking nacional a Bahia encontra-se em segundo lugar, atrás apenas do estado de São Paulo, que aplicou R$ 833 milhões”, argumenta, orientado que os dados essão do Sistema de Informações sobre os Orçamentos Públicos em Saúde (Siops), disponível a o público.
“Além disso, foram aplicados mais de R$ 7 bilhões entre obras, serviços e recursos humanos na área da saúde em 2020. Esta é a terceira maior despesa com saúde do Brasil, atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais, o que demonstra um cenário bem diferente de diversos estados do País, onde o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a redução de repasses federais têm provocado desassistência”, finaliza a pasta.