Não se deve contrariar a quem partiu
Contrariar os desejos de alguém que partiu para o além era um tabu nos tempos antigos. Acredito que até hoje não é de bom tom deixar de cumprir o que se acerta em vida com as pessoas. Mas, no passado, quando os testamentos passaram a ser verdadeiras apólices de seguro para garantir bom trânsito no mundo espiritual, a coisa era levada muito a sério. Acertava-se, por exemplo, doação de fazendas e casas para ordens religiosas, em troca de missas pela alma e o cumprimento disso era fiscalizado pela própria sociedade. Quando aparecia algum boato de que o testamenteiro – a pessoa nomeada para cumprir as disposições do testamento – não estava agindo como deveria, isso era motivo de escândalo.
Aqui está um exemplo dessa preocupação. Manoel da Silva Serva, que em 1811 fundou o primeiro jornal da Bahia A Idade do Ouro do Brasil, foi nomeado procurador do administrador do Morgado de Santa Bárbara em Salvador. Era responsável pela execução das ordens deixadas em testamento pelo casal de defuntos – Coronel Francisco Pereira do Lago e Andreza de Araújo. O problema é que o horário indicado pelos dois, pra celebração das missas em favor de suas almas era muito cedo e poucos podiam verificar se isso, de fato, vinha sendo cumprido.
Começaram os boatos e as maledicências e pra evitar qualquer mancha na sua reputação, Serva pediu uma certidão do testamento ao “Escrivão dos Ofícios das Provedorias das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos, Registro Geral dos Testamentos, Apelações e mais Anexos Respectivos da Cidade de Salvador”. Ao receber o documento da repartição de nome quilométrico, Serva o publicou na edição do dia 17 de julho de 1818 do A Idade do Ouro do Brasil.
A parte mais interessante e esclarecedora é a seguinte: “Serão obrigados a fazer que se digam duas missas cada semana na dita igreja a saber: uma a Nossa Senhora do Rosário ao sábado, pela alma de Andreza de Araújo, e outra ao domingo a Nossa Senhora da Esperança pela alma de Francisco Pereira do Lago, a qual se começara a dizer, antes do dia claro, às horas em que, no Colégio dos Padres da Companhia (de Jesus) se lance as Matinas com as suas obrigações (espirituais)”.
Ou seja, Serva deixa claro que vinha cumprindo o que determinou o casal de defuntos e, se as pessoas não percebiam a celebração das missas, é porque elas eram celebradas antes do dia amanhecer. Essa é uma das passagens do livro Basílicas e Capelinhas – um estudo sobre a história, arquitetura e arte das igrejas de Salvador, cuja quarta edição em forma de ebook foi lançado na semana passada.
Biaggio Talento é jornalista, e colaborador do O Jornal da Cidade.