Tragédia da Cavalo Marinho I completa cinco anos com processo parado e sem sentença
Desde 2017 a funcionária pública Jucimeire Santana, 51, não vai à praia, pisa na areia ou chega perto de uma lancha. Moradora do município de Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, ela é uma das sobreviventes do acidente com a lancha Cavalo Marinho I, que adernou quando fazia a travessia Salvador - Mar Grande com 116 passageiros e quatro tripulantes a bordo. Ao todo, 19 pessoas morreram na tragédia e 54 sofreram lesões e ferimentos. Após cinco anos, familiares dos mortos e quem escapou da tragédia ainda buscam justiça.
Representante, entre 2017 e 2018, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no caso, Mateus Nogueira explica que três tipos de representações judiciais se desenrolaram desde então, sendo que em apenas uma houve encerramento do caso. Um dos processos abertos é no Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), a partir do qual a vítima ou familiares constituíram advogados particulares ou via Defensoria Pública contra a empresa, solicitando indenização.
“Nem o luto a gente teve tempo de passar naquele momento, porque precisava resolver todas essas questões de sepultamento, pagamento. Em momento algum a empresa se disponibilizou e nem custeou nada”, afirma Aline Souza, que perdeu o pai no naufrágio.
Do mesmo modo, não houve sentença na esfera criminal, repartição do Ministério Público da Bahia (MP-BA) que envolve prisão, prestação de serviço e pagamento de cesta básica, por exemplo. O MP-BA salientou que ofereceu denúncia, ainda em 2017, contra o marinheiro Osvaldo Coelho Barreto, comandante da embarcação na época, e o empresário Lívio Garcia Galvão Júnior, dono da CL Empreendimentos, empresa responsável pela lancha. As alegações finais já foram dadas e a Justiça aguarda apenas a sentença do juiz.
“Eles foram denunciados por homicídio culposo e lesão culposa. Com base nos laudos periciais, a denúncia aponta que os dois agiram com imperícia e imprudência na condução da lancha Cavalo Marinho I, no dia 24 de agosto de 2017. O processo criminal se encontra concluso para decisão da Justiça”, ressalta o MP-BA.
“Tomo nove medicações, tomo medicação até para dormir. Não entro no mar, não atravesso lancha, não piso na areia. Mudou completamente a minha vida. Desenvolvi síndrome do pânico”, diz Jucimeire, a sobrevivente que abre essa reportagem.
Das três ações, segundo familiares, houve encerramento apenas na esfera marítima. Em nota, o Comando do 2° Distrito Naval da Marinha do Brasil confirmou que a ação envolvendo o acidente foi encerrada em junho de 2021. O Tribunal Marítimo, cuja função é apurar responsabilidades referentes ao acidente, cancelou o Certificado de Registro de Armador da CL Empreendimentos.
A corte ainda considerou que Lívio Garcia Galvão Júnior, dono da CL, e Henrique José Caribé Ribeiro, engenheiro da embarcação, tinham conhecimento dos riscos. Já Osvaldo Coelho Barreto, comandante da embarcação, foi absolvido.
A entidade destaca ações de prevenção em 2022. “No período entre os meses de maio e junho, antevendo as condições de mar características do inverno, foram intensificadas as vistorias das embarcações quanto à confiabilidade das estruturas e das instalações de máquinas. Também houve modificações nas especificações técnicas dos sistemas de ancoragem, de modo a tornar o conjunto mais resistente às condições de mar, durante o fundeio das embarcações”.
A reportagem entrou em contato com o TJ-BA solicitando informações sobre a tramitação dos processos, porém, não recebeu retorno.
Ondas maiores que o normal
Sobreviventes do caso apontam que a causa do acidente foi falta de manutenção na infraestrutura da lancha. Segundo eles, caso houvesse constante fiscalização da Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba) e correção dos responsáveis pela embarcação, as mortes poderiam ser evitadas.
Mas, para o advogado Leite Matos, representante de Osvaldo Coelho Barreto, a causa do acidente foi o clima atípico no dia. Ele assegura que surgiram ondas maiores que o normal em decorrência das condições climáticas e não houve falha humana. “Tem situações no mar que não se pode prever o dia que vai acontecer”, declara.
Enquanto isso, vítimas como Jucimeire aguardam indenização e punição aos acusados. Ela recorda que ficou internada durante sete dias por ter tido uma pneumonia após o episódio. “Foi um susto muito grande, eu estava na parte de cima quando de repente vi a lancha virar de 'bico'. Não podia fazer nada, as pessoas gritando, os botes estavam presos, foi um desespero. O dinheiro não vai pagar o que a gente passou, mas eles [acusados] têm que ser punidos”, diz.
A comerciante Alexandra Bonfim, 39, perdeu a irmã, Alessandra, 34, e teve que lidar, além do luto, com o auxílio na criação dos três sobrinhos. Na época, os filhos de Alessandra tinham 13 anos, 7 anos e, o mais novo, 1 ano e 3 meses. “A gente sente [a dor] até hoje. O caçula não lembra muito porque era muito pequeno, mas [para] os dois mais velhos foi um choque. O mais velho entrou em depressão imensa”.
A Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) tem 36 ações ajuizadas para garantir indenizações às vítimas da tragédia. A reportagem entrou em contato com a entidade, que falou da decisão do Tribunal Marítimo. “Na nossa avaliação, aquilo poderia ter sido evitado se a embarcação não tivesse saído por conta da condição climática. Afinal, se a condição não é favorável, não deveria ter saído naquele momento”, afirmou o defensor Gil Braga.
Segundo ele, são 36 ações acompanhadas pela Defensoria Pública, sendo uma em Salvador e as outras em Itaparica. A expectativa é que a sentença seja favorável às vítimas. “Em relação ao tempo, não conseguimos afirmar porque isso depende da produção de provas e o tempo do próprio Judiciário, que temos de respeitar. Não dá para afirmar que vai demorar um tempo xis, o que podemos dizer é que o que cabe à Defensoria Pública está sendo executado, como o cumprimento dos prazos e acompanhamentos dos familiares e atendimento das pessoas que procuram informações”, acrescenta Gil Braga.
A Agerba foi questionada sobre falta de fiscalização no caso da Cavalo Marinho I, mas não se posicionou e comunicou que “a restrição de navegação não compete à agência”. Já o advogado de Lívio Garcia Galvão Júnior, Manoel Pinto, informou que “acordos foram propostos em audiência, nos mesmos termos dos acordos precedentes que foram aceitos, homologados e pagos, mas alguns não foram aceitos, daí as ações passaram a correr normalmente”.
Familiares e sobreviventes fazem caminhada
Um ano após a tragédia da lancha Cavalo Marinho, parentes dos mortos no acidente e sobreviventes se reuniram em missa pelas 19 vidas perdidas em 2017. A partir de 2018, amigos e familiares ligados pela perda começaram a realizar uma caminhada anual pelo munícipio de Vera Cruz. Nesta quarta-feira (24), a partir das 8h, cerca de 50 pessoas devem sair com carro de som, balões e rosas brancas, relembrando entes queridos.
A biomédica Aline Souza, 38, perdeu o pai, Antônio Souza, 68, e se prepara para viajar até a cidade e participar da manifestação anual. “Estou saindo do meu trabalho, porque moro em Salvador, e voltando para a ilha para me juntar ao pessoal. Cinco anos e a gente não tem respostas, nem indenizações”, protesta.
Ela conta que estava trabalhando quando recebeu a notícia do acidente na travessia Mar Grande-Salvador, através de uma reportagem ao vivo na TV. No dia, o pai de Aline havia embarcado na lancha para buscar a esposa, com quem era casado há mais de 40 anos. Preocupada, Aline diz que recebeu orientação de ir ao Instituto Médico Legal. Ao chegar no local, reconheceu o corpo do pai.
“Foi tudo muito difícil. Ele residia em Vera Cruz há 5 anos, era aposentado, quando minha mãe se aposentou, resolveram comprar casa para poder veranear”, relembra. “Foi o pior dia da minha vida. Ainda fico muito chocada quando falo sobre isso, vem tudo na memória, tudo que vivi naquele dia”.
Parentes e sobreviventes criaram um grupo nas redes sociais para se atualizar sobre as decisões judiciais e não deixar no esquecimento o que aconteceu em 2017. Contudo, familiares ouvidos pela reportagem afirmam que têm visto o movimento esfriar. Após cinco anos sem resultado judicial, o caso já é visto com desesperança. Mas ainda existe a persistência:
“Vou continuar nessa busca incansavelmente até ter retorno do juiz, que [ele] possa concluir e nos dar paz”, pede Aline.
Relembre o caso
O caso da lancha Cavalo Marinho I foi a maior tragédia recente na Baía de Todos-os-Santos. O acidente aconteceu cerca de dez minutos depois de a embarcação, com 116 passageiros e quatro tripulantes, ter deixado o Terminal de Mar Grande, na Ilha de Itaparica. O acidente ocorreu por volta de 06h44, a cerca de 200 metros do Terminal Marítimo do município de Vera Cruz.
A embarcação foi atingida por três ondas. A primeira desviou o barco do rumo original, assim como a segunda. Já a terceira provocou inclinação em 90º [o barco adernou] e a consequente queda dos passageiros e tripulantes na água, com exceção dos que estavam no convés inferior, onde a água entrou pelas janelas e escadas de acesso, impossibilitando os passageiros de abandonarem o compartimento. Os sobreviventes que estavam no convés inferior conseguiram sair passando pelas janelas. A tripulação conta que aguardou socorro por 2 horas, à deriva.
A Marinha do Brasil (MB), Corpo de Bombeiros Militar, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e o Grupamento Aéreo da Polícia Militar da Bahia (Graer) foram acionados para resgatar os feridos.
Tragédia em Mar Grande: representantes de empresa contestam condenação e relatam 'erro de perícia'
Pela primeira vez após mais de três anos do acidente da embarcação Cavalo Marinho I, a empresa CL Empreendimentos, proprietária do barco, se pronunciou por meio dos advogados de defesa, numa coletiva de imprensa na manhã desta sexta-feira (4). Segundo os representantes, a causa determinante para o naufrágio que matou 19 pessoas e deixou 59 feridos em Mar Grande foi a condição climática que estava adversa naquele 24 de agosto de 2017 e não os “problemas construtivos” da embarcação, como concluiu o julgamento do Tribunal Marítimo da Marinha, finalizado em 21 de agosto.
A investigação da Marinha apontou a empresa CL Empreendimentos, o proprietário da embarcação, Lívio Galvão, e o engenheiro Henrique Caribé Ribeiro, que era o responsável técnico pelo barco, como culpados pela tragédia. A Corte proibiu o engenheiro de exercer a função de responsável técnico em qualquer Capitania de Portos por cinco anos. Ao sócio da CL Empreendimentos, Lívio Galvão, foi aplicada uma multa de 10.860 UFIR (Unidades Fiscais de Referência) - a ser corrigida pelo setor de execução da corte - e a empresa não poderá mais construir barcos, pois teve o registro de armador cancelado pela Marinha.
O principal problema que teria causado o acidente, segundo o engenheiro naval Vanderley Bernardo, foi que três ondas, de tamanho muito maior do que é normalmente visto naquela área da Baía de Todos os Santos - classificada de Área 1 - atingiram a Cavalo Marinho e, por isso, ela teria naufragado. Como o barco não tinha sido construído para suportar ondas daquele tamanho (de 3,8m, segundo os advogados), não teria como ela aguentar o impacto.
“Três ondas que não deveriam existir numa Área 1 tiraram a embarcação do seu curso e emborcaram a embarcação. Mesmo estável, ela não resistiria, porque ela não era uma embarcação para aquele tipo de mar”, defendeu o engenheiro.
O engenheiro naval e advogado especialista em casos marítimos Castro Freire ratificou essa informação e ainda se baseou em outra justificativa para explicar a violência das ondas: a causa da morte de duas pessoas foi por traumatismo craniano e não por afogamento. Antes de fazer a argumentação, ele pediu desculpas às vítimas do acidente.
“Pelo menos dois mortos não foram mortos por afogamento, mas por traumatismo craniano. A violência da onda foi tão grande que a cabeça dessas pessoas, me perdoem, foi esmagada contra o casco do navio. Foi uma violência tamanha que elas não morreram afogadas, mas pela pancada na cabeça”, disse o advogado.
Segundo os peritos que foram à embarcação, a primeira onda teria sido “muito forte”, o que fez a embarcação desviar do seu rumo. Já a segunda causou uma inclinação de 70 graus e a terceira deixou o barco numa inclinação de 90 graus.
Quem deveria ter avisado sobre o mau tempo?
A defesa alegou ainda que “alguém” deveria ter impedido a embarcação de fazer a travessia Mar Grande à Salvador, por conta do mau tempo. Segundo os advogados, também não foi emitido o aviso de previsão do tempo no dia anterior.
“O evento, imprevisível, não teve como causa culpa da empresa. Se tem algum responsável por fazer alguma coisa não somos nós que vamos dizer, a nossa obrigação aqui é esclarecer que nós é que não temos essa responsabilidade”, esclareceu o advogado Manoel Pinto, que representa as partes na área cível.
A Marinha informou que essa competência é emitida pelo Centro de Hidrografia da instituição. “Os avisos de mau tempo são emitidos pelo Centro de Hidrografia da Marinha, que inclusive os disponibiliza aos navegantes em sua página da internet".
A Capitania dos Portos não quis comentar a alegação porque “as questões sobre o processo estão na esfera da justiça”. A Capitania ainda disse que “os questionamentos das partes arroladas no processo devem ser submetidos e analisados pelo Tribunal Marítimo”. O Tribunal ainda não respondeu aos questionamentos do CORREIO, enviados logo após a coletiva.
Estudo de estabilidade
Os advogados disseram ainda que a embarcação tinha sim sido submetida a um estudo de inclinação e estabilidade. Aos jornalistas, eles apresentaram um documento de 18 de abril de 2016. O Tribunal Marítimo, no entanto, argumentou em sua decisão que o barco tinha passado por reformas após essa data, o que comprometeu sua estabilidade.
Porém, os defensores disseram que nenhuma alteração significativa foi feita no barco após abril de 2016 - um ano e meio antes da tragédia - somente serviços básicos de manutenção. Além disso, a Capitania dos Portos da Bahia teria dispensado o barco de um novo estudo de estabilidade. Castro Freire, um dos advogados dos condenados, disse que a Cavalo Marinho I fez 1.703 viagens neste período e que, portanto, era segura e estável.
“Em 18 de abril de 2016 foi emitido o Certificado de Segurança da navegação. Se esse documento [do estudo de estabilidade] não fizesse parte, com certeza esse certificado não seria emitido. Nenhuma embarcação possui certificado de segurança sem todos os documentos na Capitania. Se a Capitania emite um certificado de segurança da navegação sem o total dos documentos, isso é um problema dela”, defendeu Vanderley Bernardo.
Além disso, os defensores disseram que o Tribunal Marítimo contrariou uma das normas do Código Naval, que prevê que, mesmo atendendo os critérios de estabilidade, as embarcações não estão imunes a emborcamentos.
“O Tribunal Marítimo falou, no acórdão, uma porção de coisas que contrariam a norma. O juiz disse que a embarcação deveria ter resistido a qualquer onda. A norma diz no item 0639: ‘o atendimento aos critérios de estabilidade não dão imunidade da embarcação contra o emborcamento’. Então o juiz contrariou o que está na norma. Talvez ele pense isso, mas ele não conhece a norma”, denunciou Bernardo.
Lastro solto
Segundo a defesa, o lastro solto, que consta no julgamento da Marinha como uma das causas que influenciou o barco a pender para a esquerda, não teria contribuído para o acidente. Uma das explicações apresentadas foi o peso do lastro, que só tinha 300kg. De acordo com a lei, não é necessário pedir qualquer autorização para instalar ou mover equipamentos que tenham até 2% do peso do barco, que tinha 40 toneladas.
Documentos da Marinha divergem entre si, segundo defesa
Outro argumento utilizado para contestar a decisão do Tribunal Marítimo é que as perícias realizadas pela Marinha na embarcação divergem entre si e que existem ao menos 10 erros nos relatórios. Foram pelo menos três engenheiros que a examinaram por parte do Tribunal Marítimo, e dois engenheiros navais utilizados pela defesa, além de um capitão formado em meteorologia. Ao todo, foram quatro documentos de perícia no processo - três da Marinha e um da defesa.
“Eles conflitaram entre si do lado deles [da Marinha], entre o perito inicial e o perito contratado pelo juiz. Quer dizer, a dúvida continua, porque nem eles mesmo se entenderam”, afirmou Castro Freire.
Por que só o comandante do barco foi inocentado?
Dentre as quatro partes no processo da Marinha - a empresa, o dono do barco, o engenheiro e o comandante - somente o comandante da Cavalo Marinho I, Osvaldo Coelho Barreto, foi o inocentado. Segundo o advogado Castro Freire, o Tribunal chegou à conclusão que o acidente foi “irresistível, inevitável e imprevisível” e, por isso, o Osvaldo Barreto foi considerado inocente.
“Ficou provado na nossa defesa junto ao Tribunal que o acidente era inevitável, irresistível e imprevisível. Porque que era imprevisível? A Marinha emitiu o aviso de mau tempo? Não. Inevitável porque o comandante não recebeu nenhuma informação dos comandantes que já estavam navegando que ele não deveria navegar, tanto é que saiu uma embarcação minutos antes e voltou uma embarcação minutos depois do emborcamento. E irresistível porque a embarcação não foi construída para encarar aquelas ondas”, pontuou Freire.
Próximas etapas
A defesa vai recorrer da decisão do Tribunal Marítimo, que tem somente efeitos administrativos, já que o Tribunal funciona apenas como assessor do Poder Judiciário. O processo criminal ainda tramita na Justiça e está em fase de alegações finais, ou seja, reunindo os documentos de defesa para então ser julgado pelo juiz.
Os condenados pelo Tribunal Marítimo - o dono do barco e proprietário da empresa Lívio Galvão e o engenheiro Henrique Caribé Ribeiro - não comparecem à coletiva da manhã de hoje.